GUERRA FISCAL E POLÍTICAS DE DESENVOLVIMENTO ESTADUAL NO BRASIL

Sergio Prado1

RESUMO

O presente ensaio2 aborda o fenômeno da “guerra fiscal” no Brasil, buscando identificar suas origens históricas e institucionais, os tipos de instrumentos utilizados e as conseqüências da sua prática para as finanças dos governos estaduais. Sustenta-se aqui duas teses básicas. Primeiro, que a “guerra fiscal” não necessariamente redunda em perdas para os estados que a praticam, mas resulta necessariamente em perda para o conjunto do país, na medida em que não cria novos investimentos e maximiza o custo fiscal de subsidiamento dos projetos privados de inversão. Em segundo lugar, que a inusitada ampliação recente da guerra fiscal está estreitamente relacionada à fragilização da capacidade de regulação do governo central e à opção deste governo, no período recente, pela abandono e rejeição de qualquer iniciativa no âmbito de políticas discricionárias de desenvolvimento.

INTRODUÇÃO

A utilização de isenções e subsídios de vários tipos, mas principalmente de caráter tributário, é prática comum e quase permanente dos governos estaduais brasileiros desde pelo menos os anos sessentas. Depois de um período de acirramento entre final dos sessentas e início dos setentas, quando se tornou notícia pela primeira vez a chamada “guerra fiscal”, o fenômeno perdeu evidência até o final dos oitentas. No começo dos noventa, ele retorna de forma inicialmente tímida para depois explodir, a partir de 1993/4, numa grande polêmica nacional.

Seguramente nunca terá havido um momento, desde os anos cinqüentas, em que não houvesse pelo menos uma dezena de estados (e, mais recentemente, também grandes municípios) com programas de desenvolvimento regional/local em operação, utilizando predominantemente incentivos tributários. A “guerra fiscal” pode se vista, portanto, como um estado peculiar de acirramento do caráter competitivo destas políticas. Porisso, e por outras razões talvez mais relevantes que serão alinhadas à frente, o enfoque aqui adotado é analisar a guerra fiscal no contexto das políticas regionais de desenvolvimento.

Tal enfoque se desdobra no destaque de pelo menos três importantes dimensões analíticas do fenômeno. A primeira, mais evidente e talvez principal, é a da disputa no contexto federativo. O argumento desenvolvido no item 1 é que a Guerra Fiscal, tal como é hoje praticada, tem como condição básica de viabilidade a conjugação de um determinado arranjo legal da tributação do IVÃ (imposto sobre valor adicionado) e a progressiva fragilização da capacidade de regulação (tomada num sentido amplo) das relações federativas por parte do governo central. Os desenvolvimentos ocorridos neste âmbito foram de molde a criar as condições para que um fato novo e relevante, a forte retomada do investimento privado interno e externo nos anos noventa, operasse como deflagrador da ampliação e aprofundamento da “guerra fiscal”.

1 Professor do Instituto de Economia da UNICAMP.

2 ) Este ensaio resume os resultados de ampla pesquisa sobre o tema, realizado na Diretoria de Economia do Setor Público da FUNDAP – Fundação para o Desenvolvimento Administrativo – orgão do governo do estado de são Paulo, sob a coordenação do autor, e publicada em PRADO, S./CAVALCANTI, C.E. (2000).

A segunda dimensão seria dada pela guerra fiscal como uma forma peculiar de políticas de desenvolvimento industrial regional, e envolve, portanto, um outro plano de interação, aquele entre governos e o processo privado de alocação espacial do investimento. É neste âmbito que devemos discutir as características e os limites da guerra fiscal como instrumento de política regional, o que será feito no item 2. Lá, o argumento básico desenvolvido é que, nas condições hoje vigentes ao nível do arranjo federativo, a guerra fiscal como mecanismo de orientação da alocação dos grandes blocos de investimento é um processo perverso, controlado integralmente pelas empresas privadas e que conduz à maximização do custo fiscal associado à implementação de cada projeto.

A terceira dimensão é dada pelas conseqüências fiscais dos subsídios utilizados na guerra fiscal, o que para a importante questão dos possíveis impactos negativos dos incentivos sobre as finanças estaduais. No item 3, propomos uma tipologia dos instrumentos utilizados na guerra fiscal, analisamos suas características e sustentamos a tese de que, embora a guerra fiscal implique necessariamente um impacto negativo para o país como um todo, não é absolutamente evidente que os estados que a praticam percam individualmente, no médio e longo prazo, caso os projetos subsidiados sejam bem sucedidos. Na realidade, dependendo da evolução dos projetos envolvidos, o governo estadual pode se encontrar numa posição relativa melhor do que se eles não tivessem existido, ainda que o custo fiscal para o país como um todo seja alto.

Item 1. A DISPUTA FEDERATIVA E O CONTROLE DO GOVERNO CENTRAL.

As poucas tentativas de conceituação da “guerra fiscal” tendem a enfatizar, por um lado, o seu caráter conflituoso e desordenado: a atitude dos governantes exprimiria um comportamento não-cooperativo, cujos resultados práticos convergem em favor de alianças locais, ou seja, visam atender ao bem-estar dos cidadãos da territorialidade envolvida. VARSANO (1996, pag. 2) conceitua a guerra fiscal como “uma situação de conflito na federação em que o ente federado que ganha - quando, de fato, existe um ganho - impõe, em geral, uma perda a algum ou alguns dos demais, posto que ela raramente é um jogo de soma positiva”.

A ênfase no caráter conflitivo no âmbito da federação não é, contudo, suficiente para uma adequada caracterização do fenômeno. Ela significa conceituar Guerra Fiscal a partir exclusivamente do comportamento dos GSN, o que pode restringir o conceito à visão até certo ponto ingênua de comportamento cooperativo versus não-cooperativo, normalmente veiculada pela mídia. A questão central é que lutar por interesses próprios de forma não cooperativa é inerente a agentes federativos: a federação é, neste sentido, intrinsecamente conflituosa, composta por agentes em grande (e bem grande medida) competitivos entre si, o que exige a presença um ente regulador das relações federativas - o governo central em conjugação com o Congresso. Estes devem ser, no mínimo, os patrocinadores de todo um corpo jurídico que busque minimizar, pelo menos, os prejuízos que iniciativas individuais de GSN gerem para o conjunto da sociedade.

Propõe-se aqui que o foco da análise seja deslocado do comportamento dos GSN (GSN) e suas implicações para um nível mais amplo onde o fenômeno seja analisado como um caso de disfunção do processo político-institucional de regulação dos conflitos entre interesses políticos e econômicos regionais. Vista desta ótica, a guerra fiscal é um caso de uma classe geral de fenômenos que emergem quando iniciativas políticas de GSN adquirem conotações negativas e geram efeitos econômicos perversos em decorrência do caráter insuficiente ou conjunturalmente inoperante do quadro político-institucional que regula as relações federativas, o qual se revela incapaz de garantir um equilíbrio mínimo entre os diversos interesses regionais/locais de forma a evitar efeitos econômicos e sociais perversos.

Por outro lado, no caso específico que nos interessa aqui, das políticas de desenvolvimento, a dimensão e gravidade dos conflitos estão diretamente ligadas ao alcance e poder dos instrumentos de que dispõe os GSN. No caso brasileiro, como mostraremos a seguir, a forma como evoluiu a estrutura tributária criada na reforma de 1967 acabou propiciando aos governos estaduais um poderoso instrumento autônomo de ativismo desenvolvimentista. Se somamos a isto a progressiva fragilização da capacidade de controle do governo central, temos os ingredientes necessários para a explosão da guerra fiscal.

O sistema de tributação do IVA e a ação do CONFAZ

O mais óbvio componente dos controles sobre a dinâmica federativa é dado pelos dispositivos constitucionais e legais existentes no âmbito do sistema tributário e orçamentário da Federação. Embora este conjunto seja muito mais amplo, iremos nos concentrar em dois dos seus aspectos: a estrutura vigente para a tributação do valor adicionado e os dispositivos específicos que regulam a competência estadual sobre o ICMS.

O principal fator para a viabilidade e sustentação da guerra fiscal entre os Estados brasileiros encontra-se na sistemática de tributação estabelecida no comércio interestadual. O modelo brasileiro, virtualmente inalterado nas suas bases desde os anos sessentas, tem duas características que são essenciais para o problema aqui analisado. Primeiro, a competência sobre o principal imposto sobre valor adicionado - o ICMS - é dos governos estaduais, ao contrário do que pode ser considerado um padrão mundial: manter o controle deste tipo de imposto no âmbito do governo federal ou, no mínimo, por competência partilhada, que garante ao poder central algum nível de influência reguladora. Até 1988 existiam ainda alguns limites ao exercício da competência estadual. Havia um teto e exigência de uniformidade para as alíquotas, sob controle do Senado Federal. A reforma constitucional de 1988 ampliou a autonomia dos Estados para fixar, por leis próprias, as alíquotas do ICMS incidentes sobre as operações internas. A nova Constituição também retirou o poder, anteriormente existente, de a União conceder isenções e abatimentos do imposto estadual, à revelia dos estados. Finalmente, a ampliação da base do imposto - com a extinção dos ditos “impostos únicos” e a extensão aos serviços - levou a que os Estados se tornassem peças chaves na formulação da política tributária nacional, uma vez que o ICMS passou a ser o mais amplo dos tributos incidentes sobre a produção e o consumo doméstico brasileiro.

Segundo, a reforma tributária de 1967 optou pela adoção do principio da origem na formatação do IVA brasileiro. Não é o caso de detalhar aqui as motivações desta opção3. O ponto relevante é que ela fez do ICM, desde sua origem, um típico imposto sobre a produção, aspecto este completado pela não isenção para os bens de capital. Para o que nos interessa, o resultado principal é que cada estado tem sua arrecadação definida pela parcela da produção realizada no seu território, e, portanto, independente do efetivo pagamento do imposto pelos seus habitantes4. A conexão direta entre o princípio adotado e a guerra fiscal decorre de que ele é a condição essencial que permite ao governo local negociar com cada empresa as condições e eventualmente a própria obrigatoriedade do recolhimento do imposto. Mesmo na situação extrema em que toda a produção seja exportada para outras unidades da federação - há muitos casos próximos disto - o governo que sedia a produção tem a possibilidade real de, como destinatário legal da arrecadação, eventualmente conceder incentivos, diferimentos e isenções do imposto. Sendo assim, devido ao estímulo macroeconômico gerado, torna-se interessante para um estado qualquer atrair empreendimentos de outras regiões, abrindo mão de sua arrecadação, através da devolução do imposto, mesmo que o mercador consumidor da empresa esteja situado em outras localidades.5

3 ) Sobre as vantagens do uso do princípio da origem e as dificuldades envolvidas nas outras opções, ver VARSANO, R. (1979), 1980A) E (1980b) e LONGO, C. (1979), (1980a), (1980b) e (1981).

4 )Na medida em que um estado tenha superávit nas trocas comerciais internas, ele se apropria de uma parcela de receita maior do que aquela gerada internamente pelos seus contribuintes. Neste caso, os habitantes de outros estados estão financiando o Tesouro do estado comercialmente superavitário. Valeria o inverso se o princípio adotado fosse o do destino, caso em que o imposto, do ponto de vista de cada unidade federativa, se aproximaria de um típico imposto sobre o consumo. No caso brasileiro, o elevado desequilíbrio na participação dos estados na geração de valor adicionado faria com que o princípio “puro” de origem levasse a forte concentração da arrecadação na região mais desenvolvida. Optou-se, portanto, para a tributação do comércio interestadual, através do então ICM, um misto de princípio de origem e destino, fundamentado na diferenciação de alíquotas entre as operações internas e interestaduais (esta última apesar de ser inferior à primeira, é positiva). Isto afeta a divisão de receita entre os estado produtores e os estados consumidores, permitindo que os estados deficitários no comércio se apropriem de uma parcela maior da receita. Conforme salienta LONGO, C. (1980a) “A Comissão de Reforma Tributária esperava que o sistema de alíquotas diferenciadas assegurasse uma participação adequada na receita total dos Estados aos importadores líquidos no comércio interestadual (que, geralmente, correspondem aos Estados menos desenvolvidos do País)”.

5 ) É importante notar, neste caso, que a maior aproximação ao princípio do destino, decorrente de se adotar alíquotas reduzidas mas positivas no comércio interestadual, tem dimensões distintas dependendo das regiões que se considera. O modelo foi construído para, com base no princípio de origem, favorecer os estados menos desenvolvidos das regiões norte-nordeste. Assim, a alíquota para trocas entre aquelas regiões e o sul/sudeste, bem mais baixa, garante esta apropriação. No que se refere, contudo, à trocas internas às regiões sul e sudeste, adota-se alíquotas mais altas, o que resulta numa efetiva maior apropriação da receita pelo estado produtor. A concentração elevada dos mercados nestas regiões acaba levando, portanto, a uma forte dominância de um sistema de alocação interestadual de receitas pela origem.

Em síntese, estava já originalmente inscrita na modelagem adotada para o IVA a possibilidade da utilização da competência estadual sobre o imposto como instrumento de políticas de desenvolvimento regional. Isto nos leva ao segundo aspecto a destacar aqui, que se refere aos dispositivos criados exatamente para inibir ou coibir esta possibilidade.

Nas três últimas décadas, ocorreram, em períodos diversos, determinados surtos de iniciativas do tipo guerra fiscal, fazendo uso do ICM/S. Em todas elas, a possibilidade de intervenção do governo federal esteve limitada pela atribuição de competência do imposto. Qualquer restrição no plano normativo teria que passar necessariamente pelo Congresso. Já no Regime Militar, a Emenda Constitucional no.1, de 17/10/69, no seu art. 23, estabelece que a concessão de incentivos do imposto estadual deve ser subordinada à celebração de convênios entre os estados. No período 1966-1969 proliferaram no país diversos convênios regionais6, os quais tinham a finalidade de estabelecer sistemas harmonizados de incentivos fiscais entre os estados membros, e tiveram o efeito de forçar a reação de outros estados com medidas semelhantes. A partir de 1970 o Governo Federal passa a coordenar reuniões de todos os secretários de fazenda estaduais para tentar evitar os processos competitivos de concessão de subsídios. A legislação restritiva é reafirmada, posteriormente, na Lei Complementar no. 24/75, que explicita o princípio de que todo tipo de isenção deve resultar de decisão formalizada em convênios celebrados pelos estados (art. 1o.), em reunião com a participação da maioria dos estados ((art. 2o. par. 1o.) e por decisão unânime dos estados representados (art. 2o. par. 2o.), sujeitando-se os ausentes ao disposto no convênio7. Esta lei cria o CONFAZ – Conselho de Política Fazendária - composto por aqueles secretários, cuja finalidade principal era regulamentar consensualmente os tratamentos especiais na tributação do então ICM. Fica claro, portanto, que a legislação, ao mesmo tempo que transfere aos estados todo o poder para arbitrar sobre incentivos do ICM, tendo retirado do governo federal esta prerrogativa, postula também um rígido mecanismo para sua aprovação, que exige homogeneidade na abrangência e unanimidade entre os estados.

Uma primeira conclusão, portanto, postularia que os dispositivos previstos na Lei Complementar no. 24 são amplamente suficientes para coibir a maior parte dos procedimentos que foram, por um largo período, adotados na guerra fiscal: todos aqueles que se apóiam na concessão direta de facilidades no recolhimento do ICMS. A realidade, contudo, é bastante distinta. A LC 24 estipula diretamente a necessidade de regulamentação por lei ordinária, o que nunca foi realizado. Conseqüentemente, os preceitos legais existentes sobre o assunto foram sendo gerados de forma fragmentária, por meio de convênios celebrados no âmbito do CONFAZ. Não existe, até onde se pôde verificar, uma consolidação destas normas, durante todo o período pós 1975. Não há também, registro, até recentemente, de qualquer questionamento jurídico à prática de concessão de benefícios, apoiado nestas normas. Parece haver bastante espaço para interpretações diversas no que se refere ao que é exatamente um benefício fiscal, assim como sobre que tipo de política configura um benefício claramente vetado pelas normas.

6 )Convênios de Salvador (22/11/66), Fortaleza (22/02/67), Rio de Janeiro (27-0267) e Natal I e II.

7 ) A Constituição de 1988, embora tenha reduzido em muito os poderes do governo central sobre áreas e questões próprias dos governos subnacionais - por exemplo, retirando a sua competência para conceder isenções de impostos estaduais, prevista no art. 19 par. 2º. da Constituição de 1969 - preserva, claramente, a mesma orientação anterior, no que se refere aos incentivos estaduais. Além disto, o artigo 152 reza que “é vedado aos estados ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer diferença tributária entre bens e serviços de qualquer natureza, em razão de sua procedência ou destino”.

Até meados dos anos oitentas, ao que tudo indica, o CONFAZ foi capaz de exercer algum controle sobre as políticas autônomas de incentivos dos governos estaduais, muito mais pela presença forte do Ministro da Fazenda à sua cabeceira do que pelos méritos da sua própria atuação institucional8. A partir da Nova República, este papel foi progressivamente se fragilizando, e os governos estaduais progressivamente ampliando o uso de benefícios sem considerar as restrições legais existentes, levando à situação de absoluto descrédito do CONFAZ como órgão eventualmente inibidor destas práticas.

A fragilização do poder de controle do governo central

As configurações tributária e institucional descritas acima já exprimem, por si mesmas, limites a qualquer ação restritiva sobre a autonomia dos governos estaduais na manipulação tributária com vistas à industrialização. A isto se somam outros aspectos da evolução ocorrida neste largo período.

Falamos agora da capacidade que o governo central - mais especificamente o Governo Federal - detém, em determinadas circunstâncias e períodos históricos, pelo controle que assume sobre os recursos fiscais e os processos decisórios alocativos, de “regular” diretamente a alocação regional do investimento público e, direta ou indiretamente, influir poderosamente na alocação do investimento privado. Este poder, fortemente concentrado nas mãos do governo federal no início do Regime Militar, vai sendo perdido pela União, ao longo dos anos 80, em função da crise do regime autoritário e do esgotamento do padrão de financiamento do setor público vigente na década anterior. Esse padrão, que viabilizava o controle e planejamento das principais decisões de investimento a partir do governo central (a exemplo do II PND), levava a que interesses conflitantes entre blocos regionais fossem, de certa forma, subordinados a diretrizes emanadas do poder central, através da utilização dos recursos financeiros e fiscais9. Um outro aspecto, não menos importante, desta perda efetiva de capacidade "regulatória", reside no avanço do processo de descentralização político-fiscal, que culminou com a maior autonomia federativa estabelecida pela Constituição de 198810.

8 ) Depoimentos colhidos junto a técnicos que atuaram no CONFAZ neta época dão conta do papel essencial do governo federal no sentido de disciplinar estados recalcitrantes e preservar minimamente a dinâmica de negociação conveniada dos incentivos mais importantes.

9 ) Os dados referentes ao investimento público ilustram alguns aspectos discutidos acima. Observa-se que a taxa de investimento agregada do setor público (governos mais empresas da União) a preços constantes declinou de 6,9% em 1980 para 3,8% do PIB em 19909. O resultado das empresas estatais confirma esta tendência ao mostrar que a média dos investimentos dos sistemas produtivos estatais passa de US$ 12.411 milhões no período 1985/89 para US$ 6.848 milhões no período 1990/94, exprimindo uma queda de 44,82% (Tabela I. 1). Na realidade, existe até um movimento, que já se define no final dos oitenta, de substituição do governo federal pelos GSN como agentes mais dinâmicos na alocação do investimento público (ver (PRADO, S. (1995)).

A virtual estagnação do investimento controlado pelo governo federal, principalmente do setor produtivo estatal, teve efeitos que ainda não foram devidamente mapeados, principalmente na sua distribuição regional. A orientação de corte liberal imprimida à política do governo federal, por sua vez, tem rejeitado um papel mais ativo via políticas de desenvolvimento a nível nacional. Isto leva a uma virtual omissão no papel que lhe seria exclusivo, o de coordenação de políticas com este objetivo. Este conjunto de fatores, associado à expansão do desemprego no setor industrial, parece vir conduzindo a uma retomada de iniciativa dos sistemas políticos regionais, expressa no atual el0enco de políticas descoordenadas que interferem com a alocação do investimento sem critérios explícitos e organizados no plano nacional, a que chamamos “guerra fiscal”.

Item 2. DECISÃO ALOCATIVA E O ALCANCE DOS INCENTIVOS ESTADUAIS

A segunda dimensão básica do fenômeno guerra fiscal refere-se a ser ele uma forma peculiar de políticas de desenvolvimento regional. O foco aqui se desloca para a relação entre GSN e o processo privado de decisão alocativa dos investimentos. É freqüente, no tratamento da questão pela mídia, atribuir-se às iniciativas e programas estaduais um papel determinante na decisão de uma empresa sobre onde sediar sua atividade produtiva. Esta suposição implícita de um elevado poder de interferência e alavancagem dos incentivos é, muitas vezes, levada ao extremo - evidente nas justificativas retóricas dos governos - de sustentar que estes programas criam novos investimentos que, na sua ausência, não existiriam.

É evidente, contudo, que tais políticas tem como lógica básica tentar interferir num processo de decisão locacional privada que é, no essencial, subordinado a determinantes de natureza muito mais ampla, relativos ao vetor básico de custos, às condições de infraestrutura, distância dos mercados, disponibilidade de mão de obra qualificada, agressividade sindical, etc. Deste ponto de vista, pode-se aventar a hipótese de que a própria emergência das iniciativas tipo guerra fiscal estão, em alguma medida, associadas às tendências de longo prazo assumidas pelo processo decisório locacional, como mostraremos á frente.

Na hipótese de total ausência de iniciativas discricionárias por parte de governos, a avaliação alocativa dos agentes privados, orientada por critérios estratégicos, logísticos e operacionais, resultaria num dado nível agregado de inversão sob uma dada distribuição regional que, num sentido mais restrito, poderíamos assumir como “ótima”11. Qualquer alteração neste perfil alocativo envolveria, portanto, em princípio, um “custo” adicional que deveria ser coberto para que se modificasse a decisão alocativa. O argumento básico deste item sustenta que há fatores mais gerais que determinam um perfil básico de alocação espacial, o qual estabelece o contexto no qual age a guerra fiscal. Nesta dinâmica, o elemento central é o custo fiscal necessário para lograr o afastamento da empresa em relação à locação preferencial que ela adotaria na ausência dos incentivos. Nossa hipótese é que, nas condições vigentes no Brasil, o processo leva a que este custo fiscal seja maximizado.

10 ) Na situação que vigora pelo menos até o final dos setenta, o forte controle imposto pelo governo federal sobre a alocação dos recursos tributários, inclusive aqueles em princípio sob controle dos estados - fundos de participação - tornava os GSN dependentes de um desgastante processo de captação das chamadas transferências negociadas (AFONSO, J.R.R.(1994) para viabilizar investimentos. Esta situação era um fator adicional de disciplinamento que, sem dúvida, terá contribuído para facilitar ao governo federal inibir quaisquer iniciativas mais agressivas de políticas autônomas do tipo aqui analisadas.

Duas questões essenciais se colocam nos planos histórico e analítico:

1) Quais as tendências anteriores e recentes do processo privado de alocação, que definem o quadro de referência para a ação discricionária dos governos, e como estas tendências podem ter atuado como indutores adicionais da própria guerra fiscal? Aqui é essencial separarmos as tendências de longo prazo do investimento - o problema da concentração/desconcentração industrial no país nas últimas quatro décadas - da questão mais recente da retomada do investimento, principalmente estrangeiro e em particular concentrado no setor automotivo, em todo o continente latino-americano.

2) qual o alcance das atuais práticas de guerra fiscal para ampliar o volume agregado de investimentos na economia nacional e lograr uma alocação eficiente dos recursos fiscais envolvidos?

2.1. As tendências de longo prazo

A evolução histórica das tendências de alocação industrial no país poderia ser vista, no longo prazo, em três fases bem definidas e uma possível nova etapa recente. A primeira, fartamente analisada12, corresponde à concentração da indústria no Estado de São Paulo. Na segunda fase, que poderia ser delimitada no período 1970-1985, predomina claramente um forte movimento de desconcentração cujo epicentro é a região metropolitana de São Paulo. A atenuação e quase eliminação desta tendência caracteriza a terceira fase, entre 1985 e início dos anos noventa, onde se constata a estagnação das participações relativas das regiões na capacidade industrial. Finalmente, tem surgido, ainda a nível de suposições vagas e com muita controvérsia, a percepção de que, no período recente, estaria ocorrendo um movimento peculiar de reconcentração com epicentro em S. Paulo. Tomemos para análise as etapas mais recentes do processo, entre 1970 e início dos noventa.

11 ) O sentido de “ótimo” aqui seria, usualmente, o da alocação de recursos que lograria os melhores resultados econômicos para os recursos dados. Para evitar, por inadequado neste contexto, o debate sobre a adequação do conceito, preferimos utiliza-lo no sentido mais restrito da alocação espacial que sob a ótica particular de cada empresa, maximizaria seus objetivos de rentabilidade, redução de riscos e trajetórias futuras de expansão.

12 ) CANO, W. (1981).

A fase aberta em 1970 é tipicamente de desconcentração13. Há alguns aspectos importantes para a compreensão do fenômeno guerra fiscal, a serem destacados nesta etapa. Primeiro, o largo período de desconcentração resulta num movimento de alocação espacial que privilegia uma maioria absoluta de estados brasileiros, em detrimento basicamente dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Ainda assim, rigorosamente, o impacto mais forte se refere às suas regiões metropolitanas, o que é relevante muito mais no caso do Rio de Janeiro: em São Paulo, o crescimento das grandes cidades do interior não ficou muito longe dos demais centros dinâmicos da linha poligonal. Este fator, se não pode assumir forte teor explicativo, sem dúvida ajuda a compor um cenário não indutor de fortes iniciativas de guerra fiscal. Estas seriam iniciativas isoladas previsíveis por parte daqueles poucos estados perdedores o que, num contexto de forte capacidade de regulação do governo federal, seriam de difícil legitimação. Em segundo lugar, as interpretações existentes acentuam o fato básico de que não se trata de um processo de centrifugação ampla centrado em São Paulo, mas na realidade da existência de fatores de afastamento significativos aos quais se opõe outros fatores restritivos, aglutinadores, cuja conjugação resulta numa concentração ampliada para uma área geográfica maior, um “polígono” formado por grandes municípios e circunscrito à região mais desenvolvida (DINIZ, C.C.(1991). Pode-se utilizar a imagem de que, em torno à região metropolitana de S.Paulo, se definiriam, do ponto de vista da decisão privada de alocação, curvas ou zonas de equivalência no sentido de que diversas alocações alternativas apresentariam uma configuração de custo-benefício quase idênticas no que se refere a acesso a mercados, infraestrutura, etc. Na proximidade do epicentro, estas curvas indicariam vantagens crescentes alocativas à medida que dele se afastam. A partir de um certo ponto, contudo, as deseconomias predominariam, definindo uma forte descontinuidade à qual corresponde a noção do “polígono”. Retornaremos a esta imagem mais à frente, para discutir o alcance das iniciativas de guerra fiscal.

Tomando agora a etapa seguinte, os dados disponíveis evidenciam que, entre 1985 e 1990, as alterações na distribuição regional da atividade industrial são marginais. No que se refere ao núcleo econômico do país, as posições relativas básicas são mantidas. Recentemente, diversos especialistas tem sugerido a possível reversão do processo de desconcentração. A possibilidade de uma tal inflexão dinâmica no quadro locacional é ponto incipiente, longe ainda sequer de um aprofundamento maior do debate. O (em grande medida inesperado) sucesso até agora obtido pelo MERCOSUL assume, crescentemente, papel de destaque como fator que induz à gravitação direcionada ao sul. Por outro lado, o processo recente (anos noventa) de abertura da economia traz consigo também fatores de sentido contrário, como a atratividade da localização de plantas exportadoras no norte/nordeste, dado o acesso mais próximo aos mercados, particularmente o NAFTA. De qualquer forma, tal desenvolvimento, se efetivo, deverá ter o efeito de reacender os velhos conflitos entre as macro-regiões do país14. As interpretações mais recentes para este fenômeno o associam a fatores de natureza fortemente estrutural, decorrentes das grandes mutações em curso na economia brasileira. Deste ponto de vista, dada a natureza dos determinantes, tratar-se-ia, efetivamente, da possibilidade da reversão do processo, retomando a economia um movimento de reconcentração em torno à região desenvolvida. Tanto Diniz (1995) quanto Cano (1995), por exemplo, apontam para uma tendência à reconcentração da chamada indústria de serviços na área mais desenvolvida do país. Este movimento recente está relacionado com as mudanças tecnológicas e com a reestruturação produtiva, as quais tendem a alterar os requisitos locais, especialmente daquelas atividades mais intensivas em conhecimento. Além disso, o Mercosul também joga papel decisivo nesse processo.15 Dados recentes, levantados pela CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA INDÚSTRIA, registram um claro crescimento na participação da região sudeste no PIB. Entre 1985, momento aproximado onde se interrompe a desconcentração, e 1995 a região cresce de 58,18% para 62,6%. Como mostra a tabela abaixo, São Paulo acelera, no segundo lustro, sua retomada, enquanto o Rio de Janeiro, que isoladamente persistira numa rota estagnante no primeiro período, reverte drasticamente esta tendência.

13 O Estado de São Paulo sofreu uma queda total de participação no produto industrial de 56,4% em 1970 para 49,1% em 1990. Por sua vez, a área metropolitana de São Paulo assistiu à diminuição de sua participação no emprego e na produção industrial de 34% e 44%, respectivamente, para 25,2% e 26,3%, entre 1970 e 1990. Em paralelo, a economia fluminense surge como o segundo grande “perdedor” no período, tendo sua participação no valor da transformação industrial reduzida de 15,7% em 1970 para 9,5% em 1985.

TABELA I

BRASIL - PARTICIPAÇÃO DE REGIÕES NO PIB

1985

1990

1995

BRASIL

100

100

100

NORTE

4,35

3,48

3,24

NORDESTE

3,55

13,18

12,58

CENTRO-OESTE

6,24

5,92

5,86

SUDESTE

58,18

60,79

62,60

MINAS GERAIS

9,67

12,49

13,12

ESP. SANTO

1,67

1,71

2,10

RIO JANEIRO

12,78

10,89

13,17

SÃO PAULO

34,07

35,70

37,45

SUL

17,69

17,34

15,72

R.G. SUL

7,93

7,00

6,61

S. CATARINA

3,50

3,32

3,37

PARANÁ

6,25

6,31

5,95

14 Um indício claro disto é o recente caso da MP do setor automotivo, ironicamente um caso típico de guerra fiscal inter-regional operada através do governo federal.

15 Cano (1995) aponta os seguintes fatores que teriam deprimido o crescimento periférico nacional e revertido a desconcentração: i) o desmantelamento do Estado Nacional, e, por conseguinte, das política de desenvolvimento regional; ii) a abertura comercial ; iii) a maturação dos investimentos do II PND; iv) a queda dos investimentos federais e estaduais, decorrente da crise financeira por eles vivida; v) a diminuição do ritmo de crescimento das exportações; e vi) a concentração em São Paulo das empresas de informática, microeletrônica, telecomunicações e automação, o que Cano identifica como a forma reconcentrada da atual restruturação produtiva do país.

Fonte: CNI - Confederação Nacional das Industrias

De qualquer forma, ainda que questionável a idéia de reconcentração, é pacífico o ponto referente à estagnação do processo de desconcentração16. Isto significa, no essencial, que um fator importante de dinamização das economias regionais periféricas, mesmo as mais avançadas, deixa de atuar. Este é, outra vez, um fator de ordem muito geral, mas que não pode ser desprezado na tentativa de delinear os condicionantes que levam ao acirramento da guerra fiscal. Na medida em que se avança no quadro de estagnação e crise, nos anos oitentas, irão surgir as primeiras manifestações de iniciativas individuais dos entes federativos no sentido de pelo menos preservar suas posições relativas na distribuição da atividade industrial.

A retomada do investimento privado e as políticas regionais de desenvolvimento

Nos itens anteriores, caracterizamos as condições de ordem geral que abririam a possibilidade da emergência de políticas locais autônomas no sentido da criação de programas de desenvolvimento regional. Há registros de ocorrência de processos desta mesma natureza nas décadas anteriores. Parece possível afirmar, contudo, que em nenhum momento o fenômeno atingiu a dimensão que tem hoje. No período entre 1975 e final dos oitentas, a informação disponível sugere nítida perda de dinamismo destas iniciativas de políticas de desenvolvimento17. Continuam existindo programas de desenvolvimento industrial a nível estadual. Não há, contudo, registro de qualquer conflito entre GSN que sugira o uso competitivo de benefícios e incentivos, tal como ocorrera antes e viria a ocorrer no período recente.

16 Seria possível aventar uma outra ordem de explicações, derivada dos aspectos mais conjunturais que marcam a segunda metade dos oitenta. Ele concentra a etapa mais dramática de instabilidade no longo processo de crise recente da economia brasileira. Ele assiste, também, como já assinalado, à mais drástica e rápida redução do investimento público em toda a história recente da economia brasileira. Após 1986, a economia assume uma trajetória oscilante, onde o horizonte para a formação de expectativas se encurtou drasticamente. O investimento privado, após alguma recuperação em 1986, assume também trajetória nitidamente declinante. Neste quadro, é viável a suposição de que, sem prejuízo dos fatores de ordem estrutural citados, tenha efetivamente se estabelecido então um largo período onde posturas defensivas por parte da maior parte dos setores privados tenha privilegiado estratégias de ampliação de capacidade pela otimização de plantas existentes e/ou modernização e aumento de produtividade, numa opção provavelmente “não otimizante” sob certos aspectos, mas minimizando os riscos de imobilização maior de capital em quadro de elevada incerteza expectativas. Isto levaria a que, conjunturalmente, certos fatores indutores de desconcentração perdessem importância na decisão privada de alocação.

17 Para detalhes sobre a evolução histórica dos programas de desenvolvimento estaduais e da guerra fiscal, ver a íntegra do trabalho onde este artigo se origina: PRADO, S./CAVANCANTI, C.E.(2000 ).

Deveria este fato ser interpretado como indicador da capacidade do governo federal e do Congresso para estabelecer limites e restrições a práticas conflitivas e desordenadas por parte dos agentes federativos? A consideração mais cuidadosa de alguns aspectos da economia brasileira neste período não permite corroborar esta hipótese. Ela é caracterizada por forte redução tendencial do investimento agregado, provocada não apenas pela redução autônoma de grande parte do investimento privado interno, como pelo efeito negativo derivado da acentuada redução do investimento estatal (que inflete em 1981/2 e irá atingir sem ponto de mínimo em 1993) e, finalmente pela redução, a níveis baixíssimos, do investimento direto externo ao longo dos oitentas, com tendência decrescente á medida em que se agrava o quadro macroeconômico na sua segunda metade.

Neste contexto, em que a economia tende a operar predominantemente através de ciclos de produção18, sem qualquer retomada forte do investimento, é possível que tenha ocorrido uma relativa estagnação do perfil locacional da capacidade produtiva, principalmente industrial. Os dados agregados disponíveis sobre as tendências da desconcentração regional da indústria brasileira, como vimos acima, sugerem que o forte processo de deslocamento “centrífugo” da produção industrial, afastando-se da região metropolitana de São Paulo, é virtualmente interrompido em 1985, persistindo a distribuição praticamente estagnada pelo restante da década, pelo menos no que se refere à distribuição entre estados. Teria ocorrido, a nível de cada estado e principalmente São Paulo, uma significativa interiorização da produção industrial.

Se correta esta hipótese, decorre dela que o aparente desaparecimento das iniciativas mais agressivas de políticas regionais de atração decorreria muito mais desta virtual estagnação do investimento privado e estabilização temporária da distribuição espacial da produção, do que da efetividade dos controles governamentais. Vale lembrar que, já a partir do início dos oitentas, ganha força o movimento de reversão do centralismo autoritário e crescente ampliação da autonomia financeira e decisória dos GSN, a qual iria ter sua culminância nas reformas constitucionais de 1988. Mesmo neste contexto, os anos oitentas se passaram sem que qualquer conflito em torno a decisões de investimento se registrasse.

Decorre da argumentação acima que o fator decisivo para o ressurgimento do fenômeno tenha sido a retomada do investimento privado na América Latina em geral, desde final dos oitentas, e no Brasil a partir de 1993, e a retomada do investimento interno a partir da estabilização em 1994. O investimento direto externo no Brasil, durante os oitentas, apresentou comportamento tipicamente restritivo. Após uma forte redução dos fluxos de entrada, no final da década chegou a apresentar resultado líquido negativo. A partir de 1992, contudo, acumulou um resultado líquido superior a US$ 18 bilhões. Embora grande parte destes recursos esteja associada ao processo de privatização dos setores de infraestrutura, configura-se ainda assim um nítido processo de retomada. A face mais evidente e mais ruidosa destes fluxos tem sido a entrada de grandes empresas no setor de consumo durável e principalmente no setor automotivo. A conjugação dos relativos sucessos na estabilização das principais economias do continente - todas apoiadas em políticas agressivas de abertura comercial e financeira - com a criação do MERCOSUL têm induzido a uma recomposição da presença do capital estrangeiro na região, com entrada de novos agentes e expansão daqueles já aqui localizados.

18 ) Ou seja, oscilações de demanda atendidas predominantemente pela variação do nível de ocupação da capacidade produtiva instalada.

No que se refere ao investimento interno, persistem fortes questionamentos em relação á possibilidade de um ciclo de expansão da capacidade produtiva - a inversão viria se orientando, até agora, muito mais para processos de especialização, redução de gargalos e modernização orientada para ganhos de produtividade19. Ainda assim, é fora de dúvida que a adequação ao novo contexto gerado pela estabilização provocou, nos setores mais beneficiados pela dinamização da demanda interna, um ciclo de expansão que parece ter alterado aquela situação de relativa estabilização do perfil de locação espacial da produção. O setor de produção de bens de consumo, em geral, tem ampliado suas intenções de aumentar a capacidade produtiva através de novas plantas.

Para o que nos interessa aqui, há um aspecto particularmente relevante neste processo: parece ter ocorrido no período 1994/1997, pelo menos em alguns setores, uma forte concentração temporal de investimentos, determinada seja pelo atendimento aos novos níveis de consumo pós Plano Real, seja pela busca de posicionamento rápido em mercados altamente competitivos e que passaram, num curto espaço de alguns anos, a serem vistos como mais atrativos, devido a fatores como a estabilização e o MERCOSUL. Ocorreria, neste caso, uma “rodada” de novas inversões resultante da entrada de novos agentes e adequação dos já existentes às novas avaliações do setor privado.

Deste ponto de vista, seria racional a postura dos GSN no sentido de, através de políticas autônomas agressivas, buscar interferir nos processos locacionais deste fluxo conjuntural de inversão. Ainda que a estabilização se sustente e a boa imagem do país entre os ditos mercados emergentes se mantenha, é evidente que, em muitos setores, as intenções de inversão já anunciadas deverão provocar um salto significativo na capacidade produtiva, notadamente o automobilístico. Uma vez assentadas as novas grandes plantas, parece razoável supor que boa parte da expansão futura venha a ser realizada por expansão destas ou, no mínimo, com forte gravitação locacional em torno a elas, como demonstra o caso da FIAT em Minas Gerais.

19 ) Para uma avaliação recente e pouco otimista sobre estas tendências, veja-se o Editorial de INDICADORES IESP no. 50, março 1997, de autoria de Mariano Laplane e Fernando Sarti.

2.3. Limites da guerra fiscal: o impacto dos incentivos sobre o espaço econômico local

Abordemos agora a segunda ordem de questões que se coloca sob ótica das relações entre GSN e decisão privada de investimento.

Em trabalho recente, o prof. Ricardo Varsano tratou de forma rigorosa e competente a questão central envolvida na guerra fiscal: a convivência de um forte impacto negativo no plano agregado com inegáveis efeitos positivos gerados sobre a economia local.(VARSANO (1996)). O Autor parte de uma cuidadosa explicitação das condições básicas que, pela ótica da teoria das finanças públicas, tornariam justificada a concessão de incentivos e demonstra que, do ponto de vista da economia e sociedade locais, a maioria dos incentivos atende a estas condições. Esta é, fora de dúvida, a questão central em pauta, uma vez que afasta as suposições mais simplistas sobre a perversidade da guerra fiscal, e a coloca como uma alternativa lógica de política de desenvolvimento regional num sistema que não é, por princípio, intrinsecamente cooperativo.

A formulação de Varsano sugere um enfoque que pode ser fecundo no desdobramento da questão: tentar identificar as condições básicas que permitiriam defender políticas do tipo guerra fiscal (leia-se, um modelo apoiado na total autonomia dos GSN para decidir sobre a alocação de seus recursos fiscais na atração de investimentos, sem qualquer ingerência do poder central) como um second best para o tratamento da questão do desenvolvimento regional a nível nacional. Pretende-se argumentar aqui que, ainda que seja possível supor situações teóricas onde estas políticas apresentem alguns aspectos positivos, as suposições necessárias para isto são heróicas. Numa suposição mais realista, políticas tais como aquelas em curso no país hoje maximizam o custo fiscal de um volume agregado de investimento altamente inelástico a incentivos, sendo, portanto, a pior alternativa possível para a intervenção do setor público no processo de inversão privada.

O caso de defesa da guerra fiscal

Consideremos genericamente qualquer situação envolvendo um estado específico (com uma determinada dotação de recursos naturais, locacionais, infraestrutura, capacidade fiscal e financeira, etc.) e uma decisão empresarial formalizada para instalação de uma planta de perfil e dimensões dadas, em busca da melhor alternativa locacional. Tomemos como certo que a empresa terá realizado previamente uma cuidadosa análise das alternativas locacionais20 que terá resultado em algo como um mapa do que chamamos acima de áreas de equivalência. Na suposição de que sua alocação preferencial não seja no estado em questão, há necessariamente um custo envolvido em rever a locação preferencial. Aqui emerge um ponto importante. Quanto pior a posição de um estado - em geral, dos seus municípios mais atraentes - no ranking da empresa, maior o custo global envolvido em benefícios fiscais necessários para obter o afastamento da empresa perante a alocação “ótima” decorrente da sua avaliação prévia. No limite emergem restrições absolutas, expressas no exemplo simples de que não existiriam incentivos de dimensão suficiente para levar uma grande montadora para um pequeno estado da região norte. Note-se adicionalmente que, dada a escolha privada preferencial da empresa, os benefícios fiscais tem não apenas que cobrir o custo adicional envolvido no deslocamento, mas tem na realidade que superá-los a ponto de oferecer um prêmio. Se não o fizer, a empresa estaria trocando uma situação ótima “natural” por outra equivalente, mas dependente de apoio do setor público, o que evidentemente tem riscos adicionais.

20 ) Em princípio, quanto maior a dimensão de sunk costs envolvidos na inversão maior a ponderação de fatores de ordem estrutural na seleção e mais elevados os montantes de compensação que a empresa exigirá para se afastar da escolha preferencial. A título de exemplo, compare-se a instalação de uma planta automobilística numa região onde o setor não exista, com todas as exigências de desenvolvimento e consolidação de toda uma estrutura industrial de apoio (caso da FIAT em Minas) com a instalação de uma empresa tipicamente maquiadora, operando com baixa densidade de capital e apoiada em importação da maior parte do valor adicionado final.

Embora não possa ser tido como tão certo, suponhamos também que o governo do estado em questão ponha em prática uma detalhada análise dos impactos gerados pela inversão em tela, avaliando cuidadosamente os elementos de custo-benefício envolvidos. De uma forma simplificada, este processo envolve avaliar dois grandes conjuntos de efeitos. De um lado, o custo fiscal líquido dos incentivos sob uma perspectiva intertemporal. Isto é crucial porque é típico de toda política de desenvolvimento regional - e a guerra fiscal não é exceção - a concentração de impacto fiscal negativo na fase inicial, com possível e desejável recuperação parcial futura dos recursos aplicados. De outro lado, é necessário avaliar os benefícios globais gerados pela nova inversão: criação direta e indireta de empregos, efeitos de indução de inversões complementares (autopeças, por exemplo) indução á ampliação e diversificação do terciário, etc.

De um ponto de vista estritamente técnico, a avaliação do governo deveria confrontar os benefícios esperados da inversão com o custo básico necessário para obter o afastamento. Sob a suposição forte de que a decisão estadual seja orientada por uma avaliação técnica o mais rigorosa possível destes fatores, a decisão de conceder os benefícios no montante necessário para alterar a decisão da empresa seria tomada desde que o resultado da avaliação de custo benefício intertemporal fosse positiva. É uma parte essencial destas suposições a idéia de que o governo estadual tenha alguma possibilidade de avaliar, pelo menos aproximadamente, qual o custo efetivo de afastamento considerado na avaliação da empresa privada.

É possível, num esforço de defesa do caso para a guerra fiscal, indicar alguns aspectos positivos deste modelo, em contraposição principalmente a uma política industrial centralmente planejada e controlada. Ele maximiza o aproveitamento dos recursos de informação e conhecimento da burocracia técnica local sobre sua própria economia regional. Ele apresenta, em princípio, uma das vantagens básicas apregoadas para a descentralização federativa, que é a maior aproximação e subordinação das decisões aos interesses da sociedade local. Ele induz ao maior desenvolvimento de mecanismos institucionais locais de apoio e interação entre governo e iniciativa privada, e pode ampliar neste sentido a eficiência da atuação integrada entre governos estaduais e municipais (isto vem ocorrendo, fora de qualquer dúvida, em todos os estados que assumiram iniciativas agressivas de guerra fiscal).

Vale observar também que, numa situação em que o governo central de um país com altas disparidades regionais abandone qualquer preocupação por políticas integradas de desenvolvimento regional, fica politicamente legitimada a pretensão de governos estaduais, principalmente daqueles relativamente mais atrasados economicamente, em operar políticas que assumam este formato. É nossa suposição que, se fosse possível uma avaliação cuidadosa, nos termos acima, de muitos dos projetos atualmente envolvidos na guerra fiscal, seguramente se chegaria à conclusão de que o resultado líquido obtido para a economia local e para o país é potencialmente muito favorável.

Os limites da guerra fiscal

O ponto fundamentalmente frágil desta construção é que todas as suposições necessárias para garantir a eficiência de tal processo decisório alocativo de recursos fiscais são heróicas e irreais. Isto decorre basicamente de três fatores.

1) Os governos estaduais não conhecem o perfil das preferências alocativas das empresas. É elemento essencial da estratégia privada na guerra fiscal construir a imagem do “empate” entre locações alternativas, de forma a remeter para a competição entre incentivos o papel decisório final. Isto leva a que, na ausência de uma instância superior com capacidade política para interferir, o setor privado detenha a iniciativa no processo interativo que leva à decisão. Isto em geral reduz as possibilidades de que algum estado, por confiar nas suas “vantagens competitivas naturais”, abra mão de uma participação agressiva no leilão de incentivos.

2) É irreal a suposição de que a decisão de abandonar a disputa seja tomada na medida em que a avaliação de relação custo benefício estritamente econômica resulte desfavorável. O ponto, como aponta o prof. Varsano, é que entre os benefícios gerados pela inversão incluem-se, freqüentemente, fatores de difícil ponderação como o prestígio regional segundo a imagem popular, o qual se expressa no ganho de prestígio político para governos que logrem trazer para o estado grandes plantas industriais21. Disto resulta que o limite para a concessão de incentivos tende a não se pautar pela avaliação de custo-benefício, ou melhor, se pauta por uma dada avaliação onde os parâmetros da “função de bem estar” considerada são muito amplos e genéricos, e seguramente incorporam interesses particularistas associados aos grupos políticos no poder. Finalmente, as enormes dificuldades técnicas envolvidas na identificação prospectiva dos benefícios e o desaparelhamento técnico das burocracias também dificulta esta análise.

21 ) Neste caso vale lembrar que esta é a mesma história que se verificou no caso do desenvolvimento de alguns dos grandes blocos do Setor Produtivo Estatal no Brasil. Nos anos cinqüenta e sessenta, os setores de siderurgia, telecomunicações e elétrico foram total ou predominantemente implementados a partir de iniciativas estaduais, em geral apoiadas em campanhas políticas que enfatizavam as “vocações” industriais de cada estado e envolvendo. (Para uma reconstituição destes aspectos, ver PRADO, S. 1995).

3) Finalmente, o caráter competitivo e a inexistência de qualquer instância superior de arbitragem, conjugado com os dois elementos anteriores, leva necessariamente, no sentido forte de que é a postura racional mais eficiente por parte dos agentes, a uma dinâmica interativa onde o resultado final é a maximização do benefício pela sucessiva exclusão de estados participantes à medida em que a aposta supera o que sua “avaliação ampliada de custo benefício” e/ou sua restrição orçamentária permite.

Resulta disto tudo que, mesmo nos casos (provavelmente muito freqüentes, embora existam os absurdos) em que o beneficio líquido para a economia local seja positivo, é alta a probabilidade de que estes investimentos estejam sendo alocados a um custo fiscal máximo, sem que o dispêndio adicional corresponda a qualquer ganho adicional para o país.

Às observações anteriores deve-se agregar um outro aspecto fundamental. É profundamente discutível a validade do argumento usual na retórica dos operadores da guerra fiscal, de que os incentivos “criam investimento” que, de outro modo, não ocorreriam. Nossa suposição aqui é que, na maioria quase absoluta dos casos relevantes, a decisão de investimento é dada previamente, decorre de estratégias empresariais de longo prazo, e tenderia a ser realizada mesmo na ausência de incentivos. O caso do setor automotivo é esclarecedor. O bloco de investimentos recentes decorre da situação dos mercados nos países desenvolvidos e da necessidade dos grandes produtores mundiais de consolidarem posições tendo em vista o potencial de crescimento dos mercados latino-americanos. Da mesma forma, o investimento interno é, nos seus montantes principais, determinado pela ampliação recente dos mercados e pela busca, por parte das empresas, de condições de custo de mão de obra mais favoráveis. Consideramos muito provável que, na maioria dos casos, os investimentos seriam realizados mesmo na ausência total de incentivos. Evidentemente, resultaria um perfil locacional distinto, provavelmente mais concentrado. Toda a parafernália de incentivos fiscais e seu custo fiscal máximo tende a ter, na realidade, o efeito básico de alterar o perfil locacional de um volume dado de investimento.

Uma qualificação é necessária aos argumentos acima. A utilização ampla de incentivos estaduais, de forma aleatória numa dinâmica competitiva e em escala crescente, pode, a partir de um certo ponto, ter efetivamente o efeito de ampliar marginalmente volume de inversão, particularmente num contexto de abertura da economia e afluxo expressivo de investimento direto estrangeiro. De fato a guerra fiscal reduziria os custos da inversão no espaço nacional. Haveria algum sentido no argumento, freqüentemente esgrimido por técnicos estaduais na defesa de seus programas, de que estes tem afetado decisões de inversão externa que, na sua ausência, poderiam buscar outros países do Mercosul

Por outro lado, ainda que para uma parcela dos investimentos esta questão se coloque, trata-se claramente da forma mais perversa e menos eficiente de lograr resultados que, sob um sistema mais ordenado e submetido a critérios mínimos de prioridades e vantagens comparativas regionais, poderiam igualmente ser obtidos22. Na realidade, este efeito se aproxima daquele que seria obtido caso a política de incentivos fosse controlada pelo governo federal, e este decidisse ampliar os benefícios para captar mais inversões. Este é um fator relevante quando consideramos a relativa omissão do governo central no Brasil hoje. Na medida em que a iniciativa estadual aleatória e desregulada ocupa o “espaço vazio” deixado pela omissão federal, resulta o mais perverso dos sistemas.

Estes aspectos levantam a questão se diferenciar, neste contexto, dois tipos de programas de incentivos. Nos casos, referidos acima, em que a decisão de investimento é dada, decorrente de estratégias internas ou internacionais de expansão dos grandes grupos (e que supomos serem amplamente dominantes), é óbvio que, no essencial, a política de incentivos vai afetar essencialmente a alocação da inversão entre pontos alternativos da sua curva de equivalência. Há outros casos, contudo, em que se pode admitir razoavelmente que o programa possa determinar o surgimento de decisões de inversão que sem ele, não existiriam. Um exemplo pode ser o caso de programas setoriais de incentivos que exploram vantagens comparativas locais e tenham o efeito de alavancar (ainda que não exclusivamente) iniciativas locais de inversão, como o incentivo à indústria de turismo no nordeste.

A conclusão geral que pode ser derivada destes argumentos é que o potencial da guerra fiscal para alavancagem de nova inversão depende crucialmente da natureza dos setores econômicos envolvidos e, principalmente, da dimensão relativa das empresas beneficiadas. Quanto mais as políticas estaduais se direcionam para atrair a inversão dos grandes conglomerados nacionais e internacionais, maior a probabilidade de que as políticas tenham seu alcance limitado estritamente á localização espacial de montantes previamente dados de inversão.

22 ) É de difícil avaliação o resultado líquido global das vantagens e desvantagens que se colocam hoje para o grande capital internacional na escolha entre Brasil e Argentina. Se, pela ótica privada, alguns aspectos favorecem o país vizinho - por exemplo, o estágio mais avançado das políticas de liberalização - permanece o fato de que a economia brasileira, pela sua dimensão, define os rumos deste sistema regional. Qualquer que seja o avanço das reformas argentinas, se a estabilização brasileira fracassar, é enorme a chance de arrastar junto os países dependentes de seu mercado e política cambial.

Item 3. GUERRA FISCAL, FINANÇAS ESTADUAIS E REGIME TRIBUTÁRIO

A argumentação do item anterior permite entender a generalizada adesão de grande parte dos estados brasileiros às práticas da guerra fiscal, ainda que, como se evidenciara antes, estes programas tenham, no seu efeito conjunto para a economia nacional, um resultado líquido certamente perverso e negativo. Isto tem levado a um crescente debate sobre a necessidade e as alternativas de intervenção dos poderes centrais - Congresso e Executivo - para neutralizar seu impacto.

Uma das questões recorrentemente colocadas acerca da guerra fiscal é relativa ao seu impacto sobre a situação orçamentária dos governos estaduais. As perguntas relevantes são:

1) A concessão de incentivos leva a uma deterioração da situação fiscal do estado que a pratica? Este impacto, se ocorre, é imediato ou no médio/longo prazo? A principal forma de deterioração não ocorreria certamente na perda de arrecadação do ICMS?

2) Se a guerra fiscal envolve um impacto fiscal negativo, não seria ela um fenômeno fadado ao desaparecimento?

3) A concessão de incentivos afeta as finanças dos estados que não a praticam?

Um dos principais instrumentos que tem sido utilizado na guerra fiscal é a arrecadação do ICMS. Na medida em que esta fonte de recursos tenha uma posição importante no financiamento dos estados - o que acontece precisamente com os estados que analisamos neste estudo - são diretas as ilações sobre as conseqüências perversas da guerra fiscal para o seu equilíbrio fiscal. Esta discussão é apenas um aspecto restrito da questão mais geral que já foi tratada acima, de que a guerra fiscal leva, em geral, a um efeito líquido agregado negativo embora, para cada estado individual, possa ter resultados líquidos positivos. Em outras palavras, a guerra fiscal é um processo de alteração na alocação de capacidade produtiva, emprego e receita fiscal entre unidades federadas, onde o conjunto do país perde, mas nada impede que alguns, individualmente, ganhem.

Esta problemática exige considerar quais são as bases em que se assenta hoje o potencial de intervenção dos instrumentos manejados pelos estados, qual seu alcance e por quanto tempo conservarão vitalidade. Para abordar o tema, apresentamos primeiro uma tipologia de instrumentos de intervenção, a partir da qual poderemos discutir as características dos programas que os utilizam e suas relações com a fiscalidade dos GSN.

3.1. Uma tipologia de instrumentos de intervenção

A geração de incentivos diferenciais que ampliem os fluxos de investimento para uma unidade da federação pode ser lograda pela ação dirigida aos seguintes fatores:

Aspectos sistêmicos

1. Processos de desregulamentação e privatização que reduzam custos de transação, insumos e serviços e restrições de acesso a mercados .

2. Instituições públicas dedicadas ao desenvolvimento regional, pesquisa aplicada, centros de apoio á atividade privada.

3. Inversão em infraestrutura econômica e social.

Benefícios seletivos

1. Vantagens locacionais específicas para uma empresa: melhoramentos localizados de infraestrutura, garantia de suprimento de matérias primas e insumos, terrenos, instalações portuárias, etc.

2. Redução ou diferimento da carga tributária por empresa, com ou sem subsidiamento creditício implícito.

3. Concessão de crédito subsidiado.

4. Participação acionária.

. No que se refere aos incentivos sistêmicos, a presença de uma política de atração de investimento se expressaria na existência de um viés nos processos de alocação do gasto público em inversão, assim como nas reformas de corte institucional, que os orientassem para a criação de um ambiente favorável ao investimento privado em áreas e setores considerados de maior potencial no estado/região. Neste sentido, vale notar que existe toda uma importante dimensão das políticas de desenvolvimento regional - centrada na captação de recursos federais e internacionais para inversão em infraestrutura econômica e social - que envolvem forte impacto de médio e longo prazo nas condições de competitividade sistêmica das regiões. O fato de que alguns estados da federação têm sido mais bem sucedidos no acesso a recursos de entidades multilaterais como o BIRD, por exemplo, tem impactos não desprezíveis sobre suas possibilidades de atração.

No entanto, estes fatores sistêmicos, pelo seu caráter mais difuso, tendem a ter impacto mais lento sobre o processo decisório privado de alocação. Eles integram os elementos definidores das vantagens competitivas dinâmicas, e definem, na realidade, juntamente com os demais fatores estruturais, o patamar de possibilidades a partir do qual o uso de instrumentos específicos pode atuar para maximizar o volume de inversões que busca o espaço estadual.

É possível, em princípio, assentar integralmente uma política de atração de investimentos nos fatores de natureza sistêmica. No caso brasileiro atual, isto significaria focar a expansão de infraestrutura orientada para vantagens comparativas locais, melhoria de eficiência de serviços ainda públicos ou sua privatização, desenvolvimentos de formas mais eficientes de integração entre governos estaduais e municipais na criação de sistemas de informação e de apoio à inversão privada. O modelo adotado durante grande parte do período recente pelo estado de São Paulo se aproxima em muito deste tipo ideal23.

23 )Para uma análise detalhada da postura de São Paulo no contexto da guerra fiscal ver PRADO, S. e CAVALCANTI, C.E. (2000) cap 3.

O principal aspecto “negativo” desta opção é, evidentemente, a sua inadequação para lograr resultados de curto prazo. Nas situações - como parece ser a atual - em que se caracteriza um surto de expansão do investimento com fortes indícios de uma elevada mobilidade espacial, estas políticas menos agressivas podem conduzir a perdas para o estado/região, com toda certeza no curto prazo, sendo incerta a possibilidade de recuperação no longo prazo, dados os efeitos sinérgicos gerados pela alocação diferencial realizada nas demais regiões.

Os instrumentos específicos: capacidade fiscal e estrutura tributária

A utilização dos fatores específicos de atração pode ser analiticamente decomposta, de forma bastante útil particularmente para a observação de sua evolução histórica, em duas categorias típico-ideais.

Um primeiro formato ideal seria a composição dos instrumentos em programas formais de escopo amplo, com definição clara de condições de acesso a cada benefício, abertos a um elenco amplo de empresas e sem qualquer dispositivo que permita discriminação entre elas. Este padrão corresponde, grosso modo, ao que se verifica no Brasil nos anos setentas e oitentas. Seu aspecto principal é envolver, em princípio, a definição prévia do tipo de benefício envolvido, assim como a explicitação dos critérios que articulam o nível de concessões a uma escala de prioridades alocativas setoriais e/ou sub-regionais.

O segundo formato, ao nível de tipos ideais, poderia ser chamado de operações fiscal-financeiras dedicadas a projetos específicos. Este é o caso quando o governo local elabora um conjunto de benefícios negociados com o agente privado individual, envolvendo um processo interativo entre as características da inversão e os benefícios concedidos24. Os aspectos principais desta opção são a maximização da flexibilidade e do tempo de resposta, aliada a pouca transparência assumida pelo processo. Note-se que este formato tende a ser adequado nos casos em que se negocia inversões de grandes dimensões, como é o caso da expansão recente do setor automotivo.

Um aspecto básico da evolução da guerra fiscal no período recente, como veremos abaixo, é, fora de dúvida, a progressiva transição do modelo típico tradicional de programas, para uma dominância crescente de operações dedicadas. Isto fica claro em alguns casos, onde são criados programas com todo o formato típico dos tradicionais, mas cuja finalidade básica é atender a projetos específicos de grande porte. Ao mesmo tempo, é evidente a tendência de cercar estes programas de todas as garantias jurídicas que permitam reduzir o risco político de posterior interrupção dos benefícios em função de mudanças de governo. Nos casos de grandes projetos, de difícil reversibilidade sem perdas elevadas, os agentes tendem a exigir dos governos a formulação de detalhados contratos que amarrem os compromissos.

24 ) A titulo de ilustração, tem sido freqüente no Brasil que as empresas reformulem a dimensão dos seus investimentos - por exemplo, antecipando inversões previstas para prazo mais longo - em função do volume de benefícios concedidos no momento presente.

Do ponto de vista do processo recente, o relevante é avaliar as potencialidades existentes no uso dos instrumentos específicos. A potência destes instrumentos depende, basicamente, dos seguintes fatores:

1) condições orçamentárias para realocar receita própria no sentido dos gastos com benefícios. Isto envolve não apenas a dimensão dor orçamentos estaduais, mas também a situação vigente nas suas contas fiscais. Mesmo estados com elevada participação no gasto e receitas públicas nacionais pode ter conjunturalmente uma restrita autonomia para operar incentivos, devido a uma situação de forte desequilíbrio fiscal e elevado endividamento.

2) Existência de e capacidade de controle do GSN sobre órgãos e empresas públicas nos serviços de infraestrutura e insumos básicos. Este fator tem se revelado particularmente importante no caso de portos, órgãos de construção rodoviária e empresas estaduais de energia elétrica. É evidente que o movimento recente de extensão do processo de privatização aos GNS implica reduzir ou mesmo anular este tipo de instrumento, forçando a explicitação orçamentária desteS benefícios, que hoje se diluem nos programas de inversão das empresas estatais.

3) Disponibilidade direta de fontes de financiamento - setor financeiro público próprio - ou acesso a fontes federais e internacionais de crédito. Vale aqui, para o setor financeiro próprio, a mesma observação feita no item anterior, relativa à privatização estadual.

4) Competência tributária sobre impostos indiretos relevantes.

A maior parte destes fatores se reduz, predominantemente, ao poder de gasto atual dos GSN, seja via orçamento central, seja via autarquias e empresas estaduais. É evidente que, embora de forma mediada, a capacidade de alavancagem financeira está também associada aquele fator principal. Isto levaria á conclusão de que, quanto maior o poder de gasto estadual, sujeito à restrição de relativo ordenamento financeiro, e quanto maior sua disponibilidade e controle sobre geradores de infraestrutura, maior seu poder de indução ao investimento. A contraface desta proposição é que, na medida em que os GSN atravessem períodos de desequilíbrio orçamentário e sejam, ao mesmo tempo, submetidos a restrições no acesso a crédito adicional, o seu poder de fogo no uso de incentivos tende a se reduzir. Muitos observadores vêem neste aspecto um dos fatores que pode levar a que a guerra fiscal perca fôlego naturalmente, na medida em que as renúncias de receitas incidam sobre situações orçamentárias que, em geral, tem estado longe de equilibradas no país, e aumentem o custo alternativo, em termos inclusive políticos, de privilegiar gastos com incentivos.

Esta conclusão seria inatacável não fosse a natureza peculiar do fenômeno que analisamos, e que decorre das já apontada competência estadual do ICMS e da configuração adotada para o que é conhecido como Ajustamento do Imposto na Fronteira (AIF): o princípio predominantemente de origem. O ponto crucial é que, nestas condições, o resultado necessário do ato de investimento objeto do incentivo é uma ampliação imediata e perfeitamente mensurável da arrecadação tributária do governo que o concede. Assim, a base orçamentária pertinente para o período relevante do incentivo não é previamente dada: ela é afetada pelo próprio objeto do incentivo, na medida em que aumenta a produção industrial realizada localmente. Nestas condições, o GSN tem um poderoso instrumento de incentivo pela renúncia da receita futura gerada pela planta em questão, o que não afeta o nível de sua receita corrente. Em segundo lugar, dependendo da dimensão das novas plantas instaladas, e particularmente quando se trata de grandes complexos industriais como as montadoras automobilísticas, devem ocorrer efeitos indutores sobre novos investimentos de fornecedores e prestadores de serviços. Desde que o governo não subsidie também estes setores, deve ocorrer inclusive uma elevação da arrecadação perante o nível que existiria sem a realização do projeto subsidiado.

Reside aí um dos aspectos mais peculiares e perversos do atual processo de guerra fiscal. É possível afirmar que, sob a hipótese de que o projeto em seu conjunto seja bem sucedido, não deve ocorrer perda de arrecadação (perante a situação ex-ante) durante o período no qual a empresa é subsidiada e, além disto, após este período a situação fiscal, do ponto de vista estrito da capacidade de arrecadação, estará provavelmente melhorada.

A figura acima, indicando a evolução da arrecadação do ICMS de um estado hipotético, serve como referência esquemática para avaliar a questão, no caso de um grande projeto de investimento. A curva inferior (a) projeta a arrecadação que seria obtida na hipótese de que o investimento não ocorresse. No caso em que ele ocorre, a partir do momento (tempo 8) em que a empresa inicia sua operação e vendas, a receita potencial passaria para outro patamar, dado pela curva (c). Supondo, como é a prática atual de incentivos, que toda a arrecadação incremental seja diferida por subsídios, a receita efetiva continuaria a ser dada pela curva (a). Na medida em que os efeitos dinamizadores associados ao projeto começassem a ocorrer (tempo 10), haveria um ganho adicional de receita deles decorrente. Este é um ganho derivado do projeto principal, sob a suposição de que o estado não subsidie também estes novos investimentos (exemplos típicos são os fornecedores de componentes das grandes montadoras).

c

b

a

Sob o ponto de vista da economia nacional, o custo fiscal é definido pela diferença entre a curva potencial e a efetiva. Do ponto de vista da economia estadual, em comparação com sua situação anterior, no que se refere estritamente à sua receita tributária, não há uma perda efetiva. Ao contrário, ela passa a ter sua receita ampliada pelos efeitos da inversão derivada. Em outras palavras, do ponto de vista da sua receita potencial anterior, há um ganho que decorre da receita adicional que o investimento arrasta, dado pela diferença entre as curvas (b) e (a).

Suponhamos que, a partir do tempo 16, os benefícios de diferimento estejam esgotados, e a empresa retorne ao nível normal de recolhimento de ICMS. Neste caso, a receita efetiva iguala a receita potencial, num nível mais alto que a receita possível sem o investimento.

Este exemplo demonstra um ponto básico: da perspectiva do estado concedente, não há, a médio e longo prazo, perda de receita em comparação à situação hipotética de não se realizar o projeto. Durante o período de subsidiamento, do ponto de vista do comportamento temporal do conjunto arrecadação-gasto, existe evidentemente uma redução da elasticidade da receita em relação ao produto local, em decorrência da renúncia fiscal. A isto se soma o conjunto de gastos fiscais diretos exigidos pelo projeto (infraestrutura, terreno, etc.) Na hipótese de que a demanda por gastos correntes e de investimento do GSN esteja correlacionada, em alguma medida, ao nível de produto, isto apontaria para um agravamento da situação fiscal no médio prazo, ou, alternativamente, a degradação dos serviços públicos prestados. No primeiro caso, o período de subsidiamento, principalmente nos casos de políticas estaduais mais agressivas, poderá implicar um agravamento da situação patrimonial do governo, pela ampliação dívida pública. Uma vez que o diferimento do ICMS e as operações de crédito são subsidiados, a arrecadação e o retorno futuros destes recursos não cobrirão necessariamente estes passivos.

Esta conclusão, contudo, deve ser matizada por alguns fatores. Primeiro, para muitos estados é relevante, na composição de suas receitas, a parcela de recursos oriunda de base tributária global, via fundos de participação e outras transferências, o que reduz a sensibilidade da receita à perda via incentivos (na realidade, como apontam muitos críticos, alguns estados se apóiam nas receitas de transferências para ampliar sua concessão de incentivos). Segundo, há o importante aspecto dos impactos locais dos projetos bem sucedidos. De um ponto de vista dinâmico, um programa de incentivos bem sucedido deve gerar um conjunto de impactos diretos e indiretos sobre a renda local, através de empresas subsidiárias, fornecedores de componentes e equipamentos, prestadores de serviços, etc. Tudo isto tem repercussões de difícil avaliação mas seguramente positivas sobre os níveis de arrecadação, uma vez que afeta um amplo conjunto de setores que não contam com redução de imposto. É verdade que alguns estados (Paraná, por exemplo) tem estendido o benefício do diferimento também para os fornecedores que se desloquem para o estado a reboque da empresa principal. Esta, contudo, não tem sido a regra. Na maioria dos casos, à receita incremental direta (diferida) do projeto subsidiado está associada também ampliação imediata de arrecadação.

A principal implicação destes fatos é que a capacidade de concessão de incentivos de cada estado se torna, em boa medida, independente do seu poder de dispêndio e mesmo da sua situação fiscal conjuntural. Isto leva á seguinte situação limite hipotética, altamente esclarecedora. Em princípio, desconsideradas as demais condições que cercam a decisão privada de alocação, o estado de Rondônia teria, no que se refere à manipulação da carga tributária, o mesmo poder que qualquer outro estado para oferecer incentivos a uma empresa.

3.2. Mecanismos alternativos para a utilização da competência tributária

Como analisado no item 1, a utilização dos abatimentos de ICMS por iniciativa individual de cada estado é, em princípio, vetada pelos dispositivos legais vigentes. É essencial notar, contudo, que a única condição efetivamente necessária para que os estados possam utilizar o instrumento é a manutenção do princípio de origem, ou seja, que esteja garantida a apropriação da receita gerada via operação da nova planta pelo estado que sedia o investimento.

Não há qualquer impedimento legal para que um estado conceda, a uma empresa que se instale em seu território, benefícios de natureza creditícia ou financeira. Assim, nada obsta que seja concedido, por exemplo, crédito subsidiado para apoio e complementação ao capital de giro da empresa, nos primeiros anos de sua operação. Neste caso, a empresa recolheria efetivamente o ICMS, e as exigências inscritas na lei do CONFAZ não seriam desrespeitadas. É evidente, contudo, que isto abre uma possibilidade ampla para que a redução do ICMS seja camuflada por uma operação triangular que relacione, por exemplo, a empresa, o Tesouro estadual e um fundo de incentivos ao desenvolvimento estadual.

O padrão básico desta operação seria o seguinte. Cria-se um fundo de incentivos, alimentado por recursos orçamentários e outras fontes usuais, que conceda financiamento para, por exemplo, capital de giro. O montante do crédito é definido de forma a corresponder, grosso modo, ao montante esperado do recolhimento de ICMS da empresa25. Quando é um empreendimento novo, é usual a devolução integral do imposto gerado. Quando se trata de ampliação, o crédito devolve o chamado ICMS incremental. Em terceiro lugar, há que garantir a necessária transferência dos recursos recolhidos via arrecadação para o fundo de incentivos. Assim, o resultado final é o mesmo da concessão do incentivo, apenas veiculado de uma forma indireta que contempla o efetivo recolhimento do tributo.

25 )Isto explica alguns ‘números mágicos” encontrados em certos contratos do setor automotivo. Em geral o subsídio é concedido num percentual do faturamento que coincide com a atribuição da alíquota do ICMS a uma estimativa do valor adicionado da empresa.

Este modelo de incentivos teria como característica básica o abandono do uso explícito da competência estadual sobre o ICMS, e a transição para o uso de:

1) fundos fiscais de molde tradicional, cujo funding básico é composto por recursos orçamentários e empréstimos. Na realidade, idealmente, o fundo seria alimentado pela arrecadação incremental gerada pelo projeto. Isto leva a um funcionamento seguro e automático.

2) utilização (não explícita no orçamento dos fundos e no orçamento do governo) da capacidade de gasto de autarquias estaduais e empresas estatais, para criação de facilidades e benefícios de infraestrutura.

A base geral dos programas poderia ser descrita como composta de dois tipos de fluxos de recursos fiscais aplicados em benefícios. Uma parte, que se pode dizer rotativa, significa na realidade uma operação disfarçada de diferimento do ICMS, embutida na concessão de financiamento para o capital de giro. O resultado final é que a empresa deixa de existir do ponto de vista da arrecadação de ICMS. O estado deixa de recolher o novo imposto gerado, não incorrendo portanto em nenhuma redução de receita corrente. Desde que seja garantido o mecanismo de transferência da receita de ICMS do orçamento para o fundo, o mecanismo não exige do estado alavancagem creditícia de recursos. As perdas possíveis neste esquema, de um ponto de vista intertemporal, ficam restritas à definição de taxas de juros subsidiadas. A outra parte pode ser considerada, pelo menos no curto prazo, gasto a fundo perdido: benefícios diretos e doações como terrenos, infraestrutura e outras facilidades. Ainda neste caso, não se pode tomar a totalidade destes gastos como custos do empreendimento para o estado, uma vez que grande parte deles (infraestrutura de transporte, por exemplo) geram benefícios e externalidades positivas para a comunidade. Quais são os limites intrínsecos a estas duas fontes básicas de subsidiamento?

A primeira tem um limite “natural” no recolhimento de ICMS e, na realidade, desde que não seja caracterizada por um elevado grau de subsidiamento, representa efetivamente um diferimento do imposto, que pode significar um alívio financeiro para a empresa na etapa de implantação mas também uma sobrecarga financeira no futuro. Por outro lado, na medida em que o financiamento do capital de giro seja feito sem correção monetária e, muito freqüentemente, como é mais freqüente nos processos atuais, sem juros, amplia-se a perda existente no período de subsidiamento. A segunda depende diretamente da capacidade de dispêndio do governo estadual, da situação financeira de seus agentes descentralizados e da possibilidade de fontes de financiamento alternativas para os demais gastos necessários do estado, que viabilize o redirecionamento de recursos orçamentários para o fundo.

A título de conclusões

Retomemos agora as questões mais gerais com que abrimos este item. Antes de mais nada, vale chamar a atenção para que estamos aqui discutindo exclusivamente a relação entre guerra fiscal e equilíbrio orçamentário. Assim sendo, desconsideramos totalmente o problema de a guerra fiscal trazer ou não benefícios extra-fiscais ao nível de geração de empregos, modernização da estrutura produtiva local, etc. Mesmo que os impactos desta ordem sejam muito positivos, o que está em questão é se o processo para obtê-los introduz um viés deficitário nas contas públicas.

Efetivamente, não há qualquer evidência, seja de um ponto de vista histórico mais amplo, seja entre os eventos recentes, de que a guerra fiscal envolva necessariamente uma degradação da situação individual fiscal dos estados que a praticam, embora seja forçoso reconhecer que ainda é muito cedo para esta avaliação. Não parece haver, contudo, por este lado, qualquer tendência inexorável à perda de dinamismo das políticas de incentivos. Com isso queremos dizer apenas que, na medida em que sejam evitadas políticas extremadas de concessão de benefícios - como tem ocorrido em alguns casos recentes envolvendo a indústria automotiva - é possível que o resultado líquido a médio e longo prazo seja positivo para estados individuais. Isto é que torna particularmente problemática uma linha de crítica ao processo que se apóie na situação individual dos estados. Senão vejamos.

Indicamos acima dois aspectos a serem considerados. Primeiro, sempre que o incentivos sejam decisivos para alterar a decisão alocativa, grande parte do custo fiscal neles envolvidos referem-se a manipulação de receita incremental que, sem os benefícios, não existiria nos cofres do estado. Note-se também que os gastos fiscais relacionados a infraestrutura e similares, ainda que priorizados em função de uma empresa específica, raramente deixam de ter um impacto global positivo para a região, ainda que, do ponto de vista estrito do benefício marginal gerado, eles se situassem numa posição inferior da escala de usos alternativos do recurso. Deste ponto de vista, o ônus mais forte no curto prazo decorre, nos modelos atualmente praticados, da imobilização de recursos creditícios públicos.

Em segundo lugar, e mais relevante, há o importante aspecto dos efeitos dinamizadores de médio e longo prazo que a instalação de complexos industriais pode trazer. Se fosse possível estimar e trazer a valor presente a receita tributária incremental que venha a ser gerada pelas novas plantas instaladas, provavelmente os cálculos mais simplistas que tem sido apresentados na mídia assumiriam outro caráter.

De forma geral, aponta-se aqui para o fato de que, dependendo da natureza e dimensão dos incentivos concedidos, e, principalmente, dependendo de que a iniciativa seja bem sucedida no sentido de viabilizar a constituição de distritos industriais ou de complexos produtivos (setor automotivo, por exemplo), pode-se obter aquela que se constitui na alternativa ótima de resultado da política: um comportamento tipo “curva J”26 para o impacto fiscal associado aos programas. Num primeiro momento - que pode se estender por alguns anos - os custos predominariam. A partir de um certo ponto, seja pelo início da quitação de dívidas, seja pela emergência dos efeitos dinamizadores, se alcançaria um equilíbrio, possivelmente a um nível de gasto-receita mais alto do que seria possível sem a presença dos novos complexos e distritos industriais.

26 ) A noção de “curva J” é utlizada em análises de comércio exterior e câmbio para indicar o fato de que uma desvalorização cambial pode, sob certas condições, ter um impacto imediato desfavorável na balança comercial, vindo o efeito favorável a se realizar com uma certa defasagem temporal.

Deste ponto de vista, as condições essenciais para um resultado fiscal positivo seriam:

1) o dimensionamento inicial adequado dos benefícios vis-a-vis os efeitos dinamizadores esperados sobre a receita.
2) a subordinação dos benefícios a uma concepção mais ampla que envolva a criação de condições conducentes à geração de efeitos dinâmicos.

Um outro aspecto assume particular importância nos casos recentes ocorridos no setor automotivo. Como já assinalamos antes, há uma diferença enorme entre o estado atrair uma montadora e atrair três montadoras. As possibilidades de internalização, no espaço regional, da totalidade da cadeia produtiva setorial ampliam em muito o valor presente dos ganhos futuros de receita. Neste sentido, o sucesso do governo em atrair para o estado as empresas fornecedoras pode ser decisivo para lograr aquele efeito positivo. (Vale aqui lembrar, um caso histórico que pode ser muito útil no sentido de avaliar as experiências mais recentes: a instalação da FIAT em Minas Gerais, nos anos setentas. A constituição bem sucedida de todo o parque de fornecedores fez da montadora um fator extremamente dinâmico do ponto de vista da arrecadação. O município de Betim está na primeira posição em arrecadação no estado, adiante inclusive da capital). Por outro lado, na situação atual, a existência do MERCOSUL amplia o risco de que as montadoras instaladas na região sul mantenham um elevado coeficiente de importação dos países vizinhos, notadamente Argentina, reduzindo em muito este tipo de impacto que, no caso de Minas, ficou represado pelos custos de transporte.

Tomemos agora a outra questão, referente ao impacto que a guerra fiscal tem sobre os estados que não a praticam. No caso brasileiro recente, esta é a situação quase exclusiva do estado de São Paulo, embora seja verdade que, se tomarmos por um corte setorial específico (têxteis, vestuário, carnes) outros estados do sul-sudeste têm sido afetados pelas políticas de atração postas em prática pelos estados do nordeste.

A resposta à questão é necessariamente positiva, uma vez que o resultado básico do processo é, como fica claro em toda a argumentação acima, a realocação inter-regional da atividade produtiva. Na hipótese de total ausência dos incentivos, as tendências da alocação industrial, e conseqüentemente da distribuição da arrecadação do ICMS, deveriam se aproximar mais do perfil de distribuição concentrada anteriormente existente, consideradas as tendências subjacentes à decisão privada alocativa no que se refere a eventuais processos de desconcentração ou reconcentração, como já discutimos acima. Com os incentivos, e na medida direta em que eles sejam bem sucedidos - no sentido estrito de que as decisões alocativas não sejam revertidas em algum momento futuro - os estados beneficiados naquela situação passaram a ser efetivamente perdedores de receita e, portanto, sofrerão algum impacto sobre sua situação fiscal.

A questão pode ser ilustrada com o caso de São Paulo. Dada a dimensão de seus mercados, a produção das empresas que deixam o estado para se instalar em estados vizinhos tende a ser, em boa parte, importada por São Paulo. Deixando de lado, neste caso, as perdas de emprego e de outros impactos internos decorrentes da saída da empresa, o estado deixa de arrecadar os 18% de ICMS a que tinha direito quando a empresa tinha sede no estado, e passa a arrecadar apenas 6%, abatido o crédito de 12% cobrado pelo estado de origem na operação interestadual. Sendo o ICMS objeto de incentivo no estado de origem e - suponhamos - não recolhido, a empresa traz para São Paulo o que se poderia chamar de um crédito espúrio, que o estado é forçado a reconhecer na conta gráfica da empresa importadora. O imposto não é recolhido, mas São Paulo é forçado a reconhece-lo como despesa tributária legítima da empresa27.

Em síntese, o resultado agregado deste processo é, primeiro, uma perda global de arrecadação, que afeta o conjunto dos estados pelo prazo que durar os incentivos. Segundo, uma alteração no perfil de apropriação da receita tributária, em decorrência das mudanças no perfil locacional da atividade produtiva. É evidente que toda este discussão está desconsiderando outras mudanças que possam ocorrer no sistema, como, principalmente, a alteração para o princípio de destino.

Para encerrar, é conveniente um esclarecimento que evita uma leitura errada do que se colocou acima. Buscamos mostrar que, ao contrário do que é usualmente postulado, a guerra fiscal não resulta numa inexorável e imediata degradação da situação fiscal de cada GSN que a pratica. A importância desta constatação não pode ser subestimada: indica que a guerra fiscal não tende a “morrer por si mesma”, e exige, portanto, alguma ação política para controla-la. Isto não significa, contudo, minimizar o problema ou, de alguma forma, sugerir legitimidade para as práticas atuais. Primeiro e antes de mais nada, porque o custo total incidente sobre o conjunto da sociedade é absurdamente elevado. Segundo, porque a ausência de qualquer controle público sobre um processo dominado, em última instância, pelo setor privado, tem levado à expansão desmedida de benefícios, fora de qualquer critério racional.

27 ) Uma observação à margem. É frequente ouvir-se, por parte dos técnicos do governo de São Paulo, o argumento de que o estado “perde” os 12% referentes ao crédito. Isto já levou no passado, e novamente no final de 1999, o governo paulista a tentar glosar os créditos de produção subsidiada em outros estados. É compreensível a origem do argumento, mas ele é incorreto. O estado perde 12% de arrecadação quando a empresa muda sua sede para outro estado. Uma vez isto ocorrido, não há mais, na regras atuais, direito de São Paulo sobre este imposto, portanto não há perda de crédito. Ainda que seja de difícil aceitação ser forçado a abater créditos “falsos”, quem está “perdendo receita legítima”, no caso, é o estado de origem. Da mesma forma, se algum estado decide dar incentivos para empresas que sempre foram localizadas em seu território, são Paulo não perde receita. Isto decorre da regra vigente para o imposto, a mesma que garante ao estado de São Paulo um ganho de cerca de 20% na arrecadação por ser estado liquidamente exportador. A mudança na regra eliminaria a “perda” destes créditos, mas o resultado líquido para São Paulo não seria favorável. Parece certo, também, que a tentativa de glosar o crédito de produção subsidiada na origem significaria que São Paulo estaria arrecadando o imposto a que o estado de origem renunciou. O único ponto onde o questionamento tem procedência é nos casos em que a empresa utiliza a redução do imposto no estado de origem para repassar aos preços e praticar “dumping” no mercado paulista, como ocorreu algumas vezes.

Item 4 - ALTERNATIVAS DE EQUACIONAMENTO PARA A GUERRA FISCAL

Entendemos que há dois enfoques possíveis no enfrentamento dos efeitos perversos gerados pela guerra fiscal. Iremos apresentá-los de forma polarizada, buscando facilitar o entendimento. Na realidade, eles não são mutuamente excludentes, podendo estar combinados. O primeiro, que chamaremos, por falta de melhor palavra, de impositivo, parte da premissa de que estas iniciativas são condenáveis e indesejáveis in totum, e se orienta para tentar neutralizar integralmente suas manifestações. As tentativas hesitantes feitas pelo governo federal desde 1995, para coibir o processo, podem, sem abuso, ser classificadas nesta categoria. O segundo, ao qual chamaremos ordenador, admite que há um espaço para a atuação positiva de políticas regionais, e visa essencialmente evitar que elas derivem para um contexto onde os benefícios por elas gerados sejam anulados por custos fiscais excessivos.

Primeiro enfoque: diretrizes para eliminar as políticas estaduais de desenvolvimento

O primeiro enfoque admitiria, a nosso ver, três alternativas básicas para a anulação das práticas de guerra fiscal, que vem sendo discutidas no período recente.

1. Estabelecer uma restrição de ordem legal abrangente, se possível a nível constitucional, que vete os mecanismos principais utilizados, ou pelo menos aqueles vistos como mais nocivos;
2. Ampliar o arranjo institucional do CONFAZ de forma a torná-lo um fórum de fiscalização e controle efetivo;
3. Buscar a restrição através de mecanismos tributários diretos, ou seja, a adoção do princípio do destino.

A avaliação destas alternativas pode ser feita, a nosso ver, pelo uso de três critérios.

1. Eficácia - no sentido de capacidade para neutralizar todos os principais instrumentos utilizados. Sua importância decorre de que a guerra fiscal hoje lança mão de múltiplos instrumentos, não apenas estritamente tributários.
2. Eficiência - no sentido de envolver procedimentos legais e institucionais de rápida tramitação, que respondam com agilidade às demandas.
3. Viabilidade política - no sentido óbvio de maximizar as possibilidades de que se logre um consenso mínimo no plano político federativo em torno a sua implementação.

Antes de entrar propriamente na análise, vale relembrar um ponto de insistência deste trabalho. Os mecanismos de guerra fiscal no período recente têm extrapolado amplamente os limites do simples subsidiamento tributário. Se ela foi, em outros tempos, basicamente uma guerra tributária, hoje é claramente uma guerra fiscal-orçamentária. Isto coloca, para iniciativas de ação restritiva, problemas de ordem mais geral, com complexas implicações no que se referem à delimitação de autonomias dos GSN. Uma coisa é, a partir da concepção adequada do ICMS como um imposto arrecadador, rejeitar sua manipulação com fins de política discricionária. Outra, muito distinta, é questionar o poder dos governos estaduais de alocar livremente seus recursos próprios, via orçamento, para o fim que desejar. Dificilmente isto deixaria de ser visto como o retorno ao centralismo orçamentário do período do regime autoritário.

A primeira alternativa listada acima optaria por introduzir restrições de ordem geral, preferivelmente na Constituição. Um exemplo é dado pela aparente tentativa do Governo Federal de introduzir uma forte restrição no art. 155 do projeto de reforma tributária, de agosto de 1995. O mérito básico desta alternativa é a eficácia: permitiria, em princípio, coibir uma parcela mais ampla dos instrumentos hoje utilizados, principalmente a “triangulação” financeira que escamoteia o diferimento do ICMS. O seu problema principal é que ela remeteria para a justiça comum todos os questionamentos, com as implicações inevitáveis em processos demorados e perda de agilidade, sendo menos adequada do ponto de vista do critério de eficiência. Deste último ponto de vista, qualquer alternativa que se apoie em um fórum mais restrito e combine capacidade de enforcement e espaço para negociações entre agentes federativos pode ser mais eficiente. Mesmo o principal mérito desta alternativa - a abrangência - seria limitado pelas dificuldades existentes, como colocado acima, para restringir as ações tipicamente orçamentárias e creditícias sem gerar conflitos em torno à autonomia dos GSN. Vale dizer, ela pode ser de difícil viabilidade política.

A segunda alternativa seria apoiada no uso de um fórum mais restrito, o CONFAZ. A hipótese que aparentemente orientou a mais recente tentativa de inibir a guerra fiscal, incluída no projeto da Lei Kandir, era de que seu aperfeiçoamento, com a criação de uma Comissão de Ética, o tornaria capaz de regular os abusos. Esta alternativa é limitada na abrangência. Ela pode ser eficaz apenas no âmbito estrito do subsidiamento tributário, mas tem escassas possibilidades de inibir outros instrumentos. No que tange à eficiência, teria o mérito de tramitar em um fórum mais restrito, ganhando, em princípio, mais agilidade. No entanto, dado o atual formato do CONFAZ e, dada sua base legal, o Conselho poderia apenas indicar a irregularidade e agir indiretamente, através da Procuradoria da República ou do Tribunal de Contas28.

A terceira alternativa trataria de explorar a possibilidade de alterar o regime do ICMS, implementando o princípio do destino. Isto poderia ser feito diretamente, modificando-se as regras de formação de alíquotas interestaduais29 ou indiretamente, se fosse adotada a proposta do ICMS compartilhado com a alíquota federal sendo utilizada como mecanismo de transferência nas operações interestaduais, o que apresenta sensíveis vantagens adicionais30.

28 ) A proposta mais recente que remete para o Senado Federal o julgamento dos contratos firmados entre a iniciativa privada e os governos estaduais tem certa similaridade com a discussão apresentada. Eleger-se-ia o Senado Federal como um fórum especial para tomar as medidas cabíveis no sentido de inibir a disputa fiscal. Do mesmo modo que no caso do CONFAZ, esta proposta ganha em termos de viabilidade política, mas perde em eficácia e principalmente em eficiência.

29 ) Para uma discussão bastante abrangente dos problemas envolvidos, ver RESENDE, F. (1993).

Esta alternativa, se é, por um lado, altamente eficaz para interromper os fluxos de diferimento hoje em curso, não pode ser vista como panacéia, o que parece ser a opinião de alguns observadores. Primeiro, ela afeta apenas o benefício tributário, não alcançando as formas fiscal-orçamentárias de subsidiamento, tendo, portanto, eficácia restrita. Além disso, não é irrelevante a existência de um vasto estoque de acordos de diferimento, tanto explícitos como disfarçados, que seriam por ela neutralizados. Isto, por si só, estabeleceria um fator adicional de rejeição a medida, além de outras já existentes31.

Do ponto de vista mais sistêmico, é necessário notar que esta medida é tanto capaz de neutralizar as formas atuais de subsidiamento tributário quanto de inverter as relações atuais de poder relativo no uso do instrumento. O princípio do destino, ao mesmo tempo que inviabiliza o benefício para “plataformas internas de exportação” - estados com mercados próprios de pequena dimensão e próximos aos grandes centros - potencializa a capacidade de subsidiamento dos estados que detém os maiores mercados. Para muitos setores, escalas de produção viáveis, senão ótimas, podem ser próximas da parcela de mercado local controlada pela firma. Isto recolocaria, apenas para os grandes estados, a possibilidade de negociar condições para a arrecadação do ICMS em troca de investimentos, mesmo com a adoção do princípio do destino. Deste ponto de vista, portanto, o princípio do destino representa um trunfo para os estados menores não-produtores, pois amplia sua parcela na arrecadação, mas também uma perda de potencialidade relativa no uso do subsidiamento tributário.

Quanto ao critério da viabilidade política, caberiam ainda algumas considerações. Deste ponto de vista, somente a segunda e a terceira alternativa seriam aparentemente cogitáveis. A segunda, por fazer uso de um órgão já existente e propor um processo de vigilância restrito aos próprios estados, sem ingerência de outros poderes. A terceira, porque envolve para a maioria dos estados um ganho expressivo de receita32. Se consideramos que hoje a grande maioria dos estados brasileiros utilizam políticas de atração de investimentos, é pouco provável que aceitem a pura e simples eliminação desta possibilidade sem qualquer contrapartida, como ocorre na segunda alternativa. Sobraria a terceira, que tem atrativos óbvios. Resta saber se os estados, principalmente os pequenos, cujas máquinas arrecadadoras são ineficientes e não gozam de nenhum outro trunfo na guerra fiscal senão a manipulação do ICMS, aceitarão sem resistência a troca do instrumento por uma receita potencial adicional (a qual, note-se, depende de seu próprio esforço de arrecadação).

30 ) A operacionalidade do imposto compartilhado está descrita de forma didática em VARSANO, R. (1995).

31 ) O caso recente (final de 1999) ocorrido na discussão da reforma tributária é ilustrativo. Diante da implementação proposta do princípio do destino, a forte reação contrária só foi contornada pela apresentação, capitaneada pelo PFL baiano, de proposta pela qual o governo federal assumiria os custos dos projetos já aprovados.

32) É preciso fazer a qualificação de que, na hipótese de aplicação estrita do princípio do destino, os estados menores teriam a ampliação da arrecadação condicionada à melhoria da sua máquina arrecadadora, o que seria dificultado pela inevitável ampliação do número de empresas a ser fiscalizado. Isto só seria evitado pelas modalidades de recolhimento com base na origem e posterior distribuição. Para maior detalhamento, ver RESENDE (1992).

segundo enfoque: a autonomia limitada dos GSN nas políticas regionais de desenvolvimento

A segunda abordagem parte da suposição de que não é possível, talvez não seja necessária e provavelmente não seja desejável a anulação sumária das iniciativas que, na sua versão extremada, constituem a guerra fiscal.

Não é possível, nos limites do arranjo federativo vigente, pelas razões básicas que já apontamos acima. A incapacidade do governo central em operar políticas discricionárias não leva a que elas desapareçam. Ao contrário, induz a que sejam recriadas em outros níveis de governo, como vimos, apresentando deficiências e viéses específicos e novos. Os interesses políticos e econômicos que antes buscavam inserção nas políticas nacionais, agora cuidam de criar seus espaços a nível regional. Além disso, não houve, nem no período autoritário, época em que estas práticas tivessem sido anuladas.

Pode não ser necessária, porque o problema deriva não das políticas de desenvolvimento em si, mas da sua forma descontrolada e perversamente competitiva. No essencial, o problema reside em que, na ausência de uma alternativa de coordenação estatal, o processo passa para o controle do setor privado, que busca maximizar tudo o que for possível, mas seguramente não maximizará o benefício público no uso de recursos fiscais. Finalmente, pode não ser desejável devido ás diversas vantagens que a autonomia federativa ordenada oferece, numa época onde o alcance de políticas exclusivamente apoiadas no estado central parece sujeito a limites (ver abaixo).

Tudo isto leva a uma outra abordagem, que nos parece mais lúcida, que é combinar um nível mínimo de normatização restritiva com a reconstituição de um espaço institucional de ordenamento de políticas a nível nacional. Iremos nos limitar a indicar aqui, como uma contribuição inicial a um debate que tem sido particularmente pobre de alternativas, diretrizes básicas que podem orientar a solução.

1. Princípio da transparência. Qualquer alternativa de equacionamento tem como condição primeira e essencial que sejam logrados arranjos políticos e jurídicos que garantam a impossibilidade da realização de acordos secretos entre governos e empresas. É a única forma para que os incentivos possam ser, a um só tempo, objeto de escrutínio pela sociedade e objeto de avaliação e cotejamento com quaisquer regras e critérios que sejam desenvolvidos.

Não há soluções fáceis para isto, uma vez que a alternativa democrática desejável, o questionamento dos governos estaduais pelas sociedades locais, não necessariamente acontece. É possível, no entanto, que mesmo as sociedades locais, fortemente comprometidas com as políticas de atração de investimentos de seus governos, possam ser atraídas pela tese da transparência, e passem a dar respaldo a algum mecanismo que a force. Há diversas medidas que podem ser postas em prática, como o desenvolvimento de orçamentos de renúncia fiscal a nível dos estados, a exemplo do que já ocorre para o orçamento federal, ou a exigência de relatórios públicos em períodos determinados, tais como foram utilizados no caso do programa de privatização federal. Do ponto de vista dos GSN, a aceitação das exigências de transparência pode ser compensada pelo fato de conservar, de maneira legítima, a operação de políticas regionais.

2. Ação coordenadora do governo federal para obter a formulação de critérios que definam os limites em que a concessão de benefícios pode ser praticada. Isto exigiria, no essencial, que a problemática da desconcentração industrial fosse retomada; fossem hierarquizadas as regiões e sub-regiões (e não necessariamente espaços geopolíticos estaduais) do ponto de vista da relevância do adensamento industrial; fossem correlacionadas regiões e sub-regiões com setores industriais preferenciais, em função de vantagens econômicas naturais, disponibilidade de infra-estrutura, etc. É nesta direção que parece encaminhar-se a proposta veiculada pelo governador do Rio Grande do Sul, baseada na definição de “bandas ou faixas” permitidas de subsidiamento, em função do grau de desenvolvimento econômico de cada estado.

3. Desenvolvimento de mecanismos e instituições para o acompanhamento, avaliação e questionamento dos benefícios. Do ponto de vista institucional, a alternativa mais promissora parece ser a de um fórum estadual, desde que livre da regra inibidora da unanimidade, e sob a coordenação do governo federal. Não seria o CONFAZ, na sua atual estrutura, o agente adequado para isto. Seria necessária outra instituição, com novo tipo de inserção junto ao governo federal. Esta seria formada por uma secretaria executiva tecnicamente aparelhada e fortalecida e critérios decisórios em base da maioria.

Observações finais

São necessários dois comentários finais sobre a posição aqui defendida, que se orienta para a abordagem ordenadora exposta acima. Primeiro, esta opção não exclui o uso de alternativas de corte restritivo apresentadas no início. Em alguns casos, aquelas medidas podem vir independentemente da intenção de inibir a guerra fiscal, como é o caso da adoção do princípio do destino. O ponto essencial, a nosso ver, é que são restritas as possibilidades de sucesso de qualquer processo de controle que não alimente, de alguma forma, a cooperação e a adesão de uma parcela significativa dos governos estaduais. Os desenvolvimentos recentes têm demonstrado que, no momento atual, na ausência de um arranjo melhor e diante da possibilidade de perder graus de liberdade neste tipo de políticas, os governos estaduais reagirão de forma radical a qualquer tentativa de controle, como ficou demonstrado na frágil tentativa de reescrever a LC no 24/75 e criar uma inofensiva Comissão de Ética no CONFAZ.

Em segundo lugar - e este, sim, um ponto de absoluta relevância na compreensão de todo este processo - esta opção leva em consideração alguns aspectos fundamentais das transformações atualmente em curso, tanto no plano interno quanto no plano internacional.

Começando pela evolução interna, torna-se claramente definido e provavelmente irreversível o processo de desmontagem do forte aparato intervencionista que caracterizou, nas últimas décadas, o poder central no Brasil. O governo federal tem liderado todas as iniciativas de privatização e desregulamentação em diversas frentes, reduzindo drasticamente as práticas de intervenção discricionária que foram regra no passado. Em particular, como já discutimos na primeira parte deste trabalho, o governo central tem adotado posição claramente distante de políticas industriais ativas. Isto tem significado, entre outros efeitos, a desmontagem de um amplo e complexo aparato institucional que articulava e ordenava interesses de grupos regionais, setores econômicos, agentes econômicos nacionais e estrangeiros, através da atuação dos ministérios, fundos públicos, grandes empresas estatais e autarquias. Em paralelo, o processo de reformas políticas e institucionais que comandou a saída do prolongado regime autoritário resultou numa efetiva renovação da autonomia federativa que fora típica do período pós-1946, provavelmente ampliada por uma apropriação ainda mais descentralizada de recursos. Tem sido observado um movimento espontâneo, não planejado, de assunção crescente, pelos governo sub-nacionais, de encargos antes atribuídos ao governo federal.

De outra perspectiva, salta aos olhos que os mecanismos de articulação entre governos estaduais e setor privado são, hoje, radicalmente distintos daqueles que caracterizaram a etapa anterior, comandada pelo governo federal. Ao invés de um estado investidor/produtor, cujos agentes eram tecnocracias públicas, sediadas nas empresas estatais e grandes autarquias, arrastando setores privados complementares ou fazendo surgir setores econômicos dependentes do seu poder de gasto, vemos agora governos estaduais que buscam atuar complementarmente e, no essencial, de forma subordinada ao investimento privado. Se, como apontamos acima, parece que os governos estaduais têm substituído o governo federal no papel de implementar políticas regionais, é indubitável que o modelo de relacionamento se alterou profundamente.

No plano internacional, crescem as evidências de que, no contexto do que se chama modernamente de “globalização”, um dos principais desenvolvimentos é a relativa fragilização dos estados nacionais, cada vez mais incapazes de operar políticas macroeconômicas com um mínimo de autonomia e, na sua grande maioria, presos a situações de deterioração fiscal altamente restritivas33. Ao mesmo tempo, amplia-se o ênfase dos pesquisadores internacionais nas problemáticas econômica, política e social de cunho estritamente regional. Para muitos, a fragilização dos estados nacionais colocaria na ordem do dia a importância de outras vertentes de governabilidade (Hirst & Thompson (1986); Rosenau.& Czempiel (1992)).

Estes aspectos nos parecem sugerir a possível emergência do que poderia ser um novo padrão de relacionamento entre governos e sociedade na economia globalizada, no qual os agentes dinâmicos de um novo modelo de intervenção estatal seriam provavelmente os poderes políticos regionais. É evidente que os problemas e especificidades de uma economia como a brasileira impõe grandes obstáculos a um processo desta envergadura. É verdade também que muito se pode dizer contra um movimento extremado de autonomização de poderes regionais. Na realidade, toda a pesquisa aqui realizada tratou, antes de mais nada, deste fato. E mais evidente ainda, este é um tema que demanda, por si só, toda uma investigação adicional, que ultrapassa os limites deste trabalho.

33) No limite, conduzindo a posições do tipo representado por autores como OHMAE (1990), que defendem o fim das fronteiras econômicas e o fim do chamado interesse nacional.

Em que pese tudo isto, persistem as evidências de que o estado brasileiro avançou de uma posição extrema de centralização decisória, que coincidiu historicamente com o autoritarismo, para um processo crescente de descentralização política e fiscal, avançando muito mais rapidamente do que a necessária construção de um arranjo institucional capaz de regulá-la. A guerra fiscal surge, claramente, como uma manifestação deste descompasso. O ponto crucial é que talvez não seja possível, se é que é desejável, reconstituir os velhos mecanismos de regulação. Abre-se, portanto, o desafio de adequar a organização do estado a esta nova realidade.

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