Forum Fed.doc

Seminário Internacional

“O DESAFIO DAS REGIÕES METROPOLITANAS

EM PAÍSES FEDERATIVOS”

Brasília, 30-31 de março de 2004

Câmara Federal, Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior
Secretaria de Coordenação Política e Assuntos Institucionais da Presidência da República
Ministério das Cidades
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA
Forum das Federações

Documento apresentado:

“ALGUNS ASPECTOS E DESAFIOS DA GESTÃO METROPOLITANA NA AMÉRICA LATINA E O CARIBE”

Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos

(UN-HABITAT)

Escritório Regional para a América Latina e o Caribe

(ROLAC)

Alberto Paranhos

Oficial Principal

RESUMO EXECUTIVO.

A Região da América Latina e Caribe é a parte mais urbanizada do mundo em desenvolvimento, com taxa de urbanização ainda muito ativa embora em tendência de desaceleração, e tem quase 50 Municípios com mais de 1 milhão de habitantes. A região conta com 4 Estados Federativos: Argentina, Brasil, México e Venezuela, o que inclui os dois países de maior volume populacional e econômico da região (Brasil e México).

Em todas elas, as Constituições Federais garantem a autonomia municipal em termos políticos, administrativos, financeiros e operacionais, mas só no Brasil o Município é Ente Federado. Nos demais casos, o Município depende da esfera intermediária de governo (Estado ou Província).

Com raras exceções, as Constituições Federais mencionam áreas metropolitanas ou regiões metropolitanas, mas nenhuma delas estabelece explicitamente algum mecanismo de gestão, tal como fazem para as esferas intermediárias (Estados e Províncias) e locais (Municípios).

As autoridades metropolitanas existentes têm formatos institucionais muito variados e geralmente existem conflitos de competência entre a esfera municipal e a esfera metropolitana, fazendo que a existência harmoniosa dessas duas esferas dependa mais da vontade política e entendimento pessoal de suas respectivas autoridades que de alguma norma jurídica de maior hierarquia. Há casos interessantes de associação municipal, delegação de poderes, etc, tanto nas Federações como em países unitários.

Como é relativamente fácil criar Municípios, esta situação combinada com a autonomia municipal torna difícil a conformação e consolidação de autoridades metropolitanas sólidas e eficientes, cuja ação seja mais coordenadora e complementar com relação às atribuições específicas dos Municípios.

As questões em debate incluem a sustentabilidade dessa autonomia municipal, a qualidade da gestão local, a adequação entre recursos e competências dentro da mesma esfera de governo, a vontade política dos Municípios como gênese da autoridade metropolitana e manifestação de sua autonomia, a vinculação da autoridade metropolitana à prestação de serviços aos Municípios e à entrega de produtos definidos, mais que uma esfera de coordenação e controle, e as atuais tendências de Governança Participativa que exigem cada vez mais uma combinação custo-eficiente entre processos e resultados, envolvendo legitimidade, participação, transparência, eficiência e eficácia, segundo o proposto pela Campanha Mundial do UN-HABITAT para a Boa Governança Urbana.

Este debate precisa ser feito com um critério de renegociação do pacto federativo com foco na gestão eficiente de regiões metropolitanas e aglomerados urbanos, mas a partir dos elementos constitucionais existentes, e preferencialmente a partir da vontade política das autoridades municipais, apoiadas e estimuladas pelas autoridades nacionais.

COMENTÁRIOS INICIAIS.

Para fins deste documento, se vai utilizar o termo “federativo” para designar o regime federativo e o Estado resultante da federação, “federal” para indicar o governo deste Estado Federativo ou a instância nacional do mesmo e “federado” para fazer referência a cada um dos Estados e Entidades que se associam para conformar o Estado Federativo.

A região da América Latina e o Caribe é a parte do mundo em desenvolvimento com maior taxa de urbanização, já que 75.8% da população é urbana1, comparada com a África Sub-sahariana, por exemplo (34.6%) ou o Sudeste da Ásia (38.3%). Essa taxa é comparável à da atual União Européia (73.6%). Este processo de urbanização continua e, mesmo arrefecendo a sua intensidade, ainda há um crescimento importante. A região abriga duas das maiores conurbações mundiais, cujos polos são as cidades do México e de São Paulo, e conta com quase 50 Municípios com mais de 1 milhão de habitantes (2000-2001).

Este crescimento urbano, entretanto, não tem conseguido superar com rapidez e sustentabilidade a pobreza da região, apesar de que existem algumas melhoras: 31.9% da população urbana da região vive em assentamentos precários2, contra 71.9% na África Sub-sahariana, 38.3% no Sudeste da Ásia e apenas 6.2% na atual União Européia. Na América Latina e o Caribe, a grande maioria desses assentamentos precários está situado em áreas urbanas conurbadas e regiões metropolitanas. Existe também uma considerável pobreza nas áreas rurais e em pequenas cidades, e está em curso um amplo debate sobre qual a melhor estratégia para combater a pobreza urbana: se investir preferencialmente nos assentamentos precários das grandes metrópoles, que realmente concentram a maior parte das famílias pobres, ou satisfazer as necessidades básicas e o acesso a serviços das populações pobres que residem em pequenas cidades, de modo a conter a migração destas em direção às grandes metrópoles.

1 UN-HABITAT, “Global Report on Human Settlements 2003: the Challenge of Slums”, Nairobi, 2003.

2 Ibid.

Além das dimensões físico-territoriais, socio-econômicas, ambientais e de lógica funcional da produção nas regiões metropolitanas e aglomerados urbanos, é necessário estudar e aperfeiçoar a dimensão institucional-gerencial das mesmas, tratando de implementar progressivamente mecanismos mais custo-eficientes para a sua gestão, dentro do que permita o respeito aos hábitos culturais e de convivência política que caracterizem cada uma dessas regiões metropolitanas.

ALGUNS ASPECTOS E DESAFIOS DA GESTÃO METROPOLITANA EM PAÍSES FEDERADOS DA AMÉRICA LATINA E O CARIBE.

Marcos iniciais

Segundo diversos autores3, a origem da palavra “federação” é a palavra latina foedus que significa “pacto”, “aliança”. Uma Federação moderna inclui entre suas características principais os seguintes elementos, entre outros (seleção ilustrativa):

Somente o Estado Federal tem soberania e é constituido por diversos Estados e Entes voluntariamente associados em um novo Estado Federal;
A base jurídica do Estado Federal é uma Constituição, onde são fixadas as atribuições da União e dos Estados Federados, por meio de uma distribuição de esferas de competência;
A Constituição Federal assegura autonomia aos Entes Federados, que se consubstancia na sua capacidade de auto-organização, autolegislação, autogoverno e auto-administração;
Os Entes Federados têm liberdade de ação na esfera de competência que lhes for atribuida pela Constituição Federal;
A cada esfera de competência é atribuida renda própria.

3 DALLARI, Dalmo, “Elementos de Teoria Geral do Estado”, 22a edição, 2001; também, BONAVIDES, Paulo, “Ciência Política”, 10a edição, 2002.

Para fins desta apresentação, vamos considerar principalmente os elementos de uma estreita cooperação normativa e operacional entre as esferas nacional e subnacionais de governo, cada uma delas com autonomia, atribuições e recursos específicos. Em todas as referências de textos constitucionais, esta alude à Constituição vigente em 20 de março de 2004, quando se fez a pesquisa.

A América Latina e o Caribe hospeda quatro Federações:

A República Argentina;
A República Federativa do Brasil;
Os Estados Unidos Mexicanos;
A República Bolivariana da Venezuela.

É curioso notar que apenas o Brasil adota atualmente no nome oficial do país a referência de regime federativo.

Nas Federações da América Latina e o Caribe, assim como na maioria dos Estados Unitários da região, se reconhecem três esferas de governo com administração própria:

Nacional (federal ou central);
Intermediária (Estado, Província, Região, Departamento);
Local (Município, Distrito, Cantão, Comuna, Partido, etc).

Cabe esclarecer que, nos Estados Unitários, a esfera intermediária nem sempre tem autonomia política e é geralmente uma simples desconcentração administrativa da esfera nacional.

Há algumas exceções interessantes nessa territorialização subnacional, como por exemplo:

Na Bolívia, existe uma esfera formal entre a intermediária (Departamento) e a local, denominada Província, que não tem administração própria; nesse país, a esfera local é chamada formalmente de Seção de Província e seu governo é a Municipalidade.
No Panamá, a esfera local é denominada Distrito, mas existe uma esfera sublocal, denominada Corregimento, que é assimilada a um “distrito eleitoral”. Há mais de um Corregimento em cada Distrito, dependendo de sua população, e os/as Representantes de Corregimento de um mesmo Distrito conformam a sua Câmara Municipal.
No Perú, a esfera intermediária é denominada Província, e há uma iniciativa no sentido de aglutinar algumas Províncias em uma Região, com administração própria. Ainda não estão perfeitamente definidos os alcances da distribuição de competências e recursos entre as Regiões e as Províncias.

Federação e Descentralização

Um Estado Federativo na América Latina e o Caribe não é necessariamente mais descentralizado que um Estado Unitário, pelo menos com referência á porcentagem total de recursos públicos manejados pelos governos subnacionais (esferas intermediária e local somadas). Alguns exemplos4 em ordem decrescente:

Argentina: 49.3%

Brasil: 45.6%

Colômbia: 39.0%

Bolívia: 26.7%

México: 25.4%

Venezuela: 19.6%

Média geral da região: 14.6%

Média geral da OCDE: 34.9%

Apesar de que as quatro Federações Latinoamericanas estão entre os seis Estados mais descentralizados quanto à gestão subnacional do orçamento público, aí também estão dois Estados Unitários. Essa descentralização operacional de recursos vem variando bastante e, se em alguns países ela tende recentemente a aumentar, como no Chile, essa tendência ainda não se verifica na maioria dos casos.

Metropolização

O fenômeno dos grandes aglomerados urbanos na região da América Latina e o Caribe é reconhecido por diversos nomes, como conurbação, região metropolitana, entre outros. Este fenômeno é multidimensional, já que inclui aspectos físico-territoriais, socio-econômicos, ambientais, etc. Costuma-se associá-lo a uma lógica de relações funcionais-produtivas entre áreas urbanizadas situadas em jurisdições territoriais vizinhas É geralmente um complexo urbano compacto, com uma área urbanizada mais ou menos contínua, com importantes densidades demográficas de uso e ocupação do solo, mas incluindo muitas vezes áreas de expansão urbana ou de reserva, e algumas áreas (poucas) de ocupação rural.

4 Banco Interamericano de Desenvolvimento, in “IDB America” magazine, janeiro-fevereiro de 1998 (espanhol).

A questão em debate é: como fazer a dimensão legal-institucional desse fenômeno acompanhar a sua realidade territorial, socio-econômica e funcional-produtiva? De modo mais específico, o problema está em que, nos Estados Unitários, apesar da autonomia municipal assegurada nas Constituições, o Governo Central tem poder suficiente para constituir entidades supramunicipais. Já nos Estados Federativos, a criação de entidades supramunicipais implica uma renegociação de poderes, competências e recursos, a partir do que já estiver garantido na Constituição Federal. Será necessário repactuar esses atributos, pensando em aperfeiçoar a relação custo-benefício da administração pública, dentro do objetivo geral de prover bens e serviços à população para satisfazer suas necessidades básicas e melhorar progresivamente a qualidade de suas condições de vida, homogeneizando e universalizando o “direito à cidade” para toda a população metropolitana.

Vejamos rapidamente como cada uma das Constituições dos Estados Federativos da América Latina e o Caribe trata o tema metropolitano.

Argentina

A Constituição da República Argentina de 1994 não faz referência explícita a “regiões metropolitanas”. No seu Título Segundo, o texto constitucional reproduz perfeitamente a idéia do “pacto federal” aoindicar que “as Províncias conservam todo o poder não delegado por esta Constituição ao Governo Federal, e o que expressamente tenham se reservado por pactos especiais no momento de sua incorporação”5. Também indica que cada Província formulará sua própria Constituição, “assegurando a autonomia municipal”6 e que as Províncias “poderão criar regiões para o desenvolvimento econômico e social”7.

A Cidade de Buenos Aires tem um regime próprio de governo assegurado pela Constituição8, será governada por um Chefe de Governo eleito diretamente e terá uma Lei Específica para garantir os interesses do Estado Nacional enquanto a cidade for a capital da Nação9.

5 Art. 121.

6 Art. 5 e 123.

7 Art. 124.

8 Art. 129.

9 Ibid.

A Constituição da Cidade de Buenos Aires (1996) em seu artigo 7o. institui o Estado da Cidade Autônoma de Buenos Aires como sucessor dos direitos e obrigações da antiga Municipalidade de Buenos Aires. Seu Poder Legislativo é constituido por Deputados/as, o que é consistente com a idéia de associar a Cidade de Buenos Aires à instância de uma Província e não de um Município. Entretanto, a Constituição não dá referências sobre a gestão de serviços comuns entre Buenos Aires e seus vizinhos. Existe um mecanismo metropolitano específico para o tema de transportes urbanos.

Cada Província formula uma Lei Orgânica dos Municípios Provinciais, o que dá uma idéia muito clara de que os Municípios dependem de certa forma do que lhes atribua cada Província, e dentro desses limites define a sua Carta Municipal para regulamentar essas atribuições. Alguns juristas debatem se essa situação municipal é realmente de autonomia ou de autarquia10.

Todas as autoridades provinciais e municipais são eleitas diretamente.

Com cerca de 2.780.000 km2, a Argentina tem 23 Províncias e um total de 2.171 Municípios mais a Cidade de Buenos Aires, que goza de um status especial como Capital Federal.

Brasil

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 delega aos Estados a atribuição para instituir regiões metropolitanas, aglomerados urbanos e microrregiões11, mas não define estes conceitos. Há uma aceitação geral sobre a necessidade de se aprovar uma Lei Federal Complementar para definir estes conceitos e dar diretrizes sobre a organização e gestão desses espaços territoriais conurbados.

A Constituição Federal brasileira tampouco faz referências explícitas a consórcios ou associações municipais, mas se depreende que essas possibilidades decorrem da autonomia municipal e suas competências.

10 GARCIA B., HORACIO, La Autonomía de los Municípios Provinciales en la Reforma Constitucional de 1994, Academia Nacional de Ciencias Morales y Políticas, Buenos Aires, 1995

11 Art. 25, parágrafo 3o.

Já nos anos 70´s, Leis Federais criaram 9 Regiões Metropolitanas em Belém, Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo (1970), e no Rio de Janeiro (1974). Mais recentemente, foram criadas três Regiões Integradas de Desenvolvimento, denominadas de esta forma, por conter uma conurbação distribuida em mais de um Estado: Brasília (Distrito Federal e Goiás), Juazeiro-Petrolina (Bahia e Pernambuco) e Teresina (Piaui e Maranhão).

O formato institucional para a gestão dessas regiões metropolitanas é muito variável, apesar de terem a mesma origem: há entidades com formato de Secretaria de Estado, Empresa Pública, Autarquia, Agência Reguladora, etc. No Rio de Janeiro, a entidade metropolitana está desativada há vários anos.

Na Federação brasileira há um detalhe único: o Município é Ente Federado no mesmo nível dos Estados e do Distrito Federal12.

Todas as autoridades estaduais e municipais são eleitas diretamente.

Com cerca de 8.514.000 km2, o Brasil tem 26 Estados, um Distrito Federal com status semelhante a um Estado e 5.558 Municípios.

México

A Constituição dos Estados Unidos Mexicanos de 19NN não faz referência à dimensão “metropolitana”, com a exceção explícita do Distrito Federal, mencionada mais adiante neste documento. Há inclusive uma referência proibitiva do ponto de vista da gestão, quando menciona que “não haverá nenhuma autoridade intermediária entre o Município e o Governo do Estado (Federado)”13.

A Constituição indica também que a “base da divisão territorial de cada Estado (Federado) e de sua organização política e administrativa é o Município Livre”14.

Também indica que os Municípios, “previo acordo de suas respectivas Câmaras Municipais, poderão coordinar-se e associar-se para uma prestação de serviços públicos mais eficaz oo um melhor exercício das funções que lhes correspondem”15, com a ressalva de que, ao se tratar de “Municípios em dois ou mais Estados, deverão contar com a aprovação das legislaturas dos Estados respectivos”16.

12 Art. 1.

13 Art. 115, inciso I.

14 Art. 115, caput.

15 Art. 115, inciso III.

Entretanto, apesar dessas menções, a Constituição também indica que “quando dois ou mais centros urbanos situados em territorios municipais de dois ou mais entidades federadas formem ou tendam a formar uma continuidade demográfica, a Federação, as entidades federadas e os municípios respectivos, no âmbito de suas competências, planejarão e regularão de maneira conjunta e coordenada o desenvolvimento desses centros urbanos conformne à lei federal sobre a matéria”17.

Por outro lado, quando faz referência ao Distrito Federal18, a Constituição indica que:

a) Existirá um Chefe de Governo do Distrito Federal, eleito;
b) O Chefe de Governo estabelecerá os órgãos político-administrativos em cada uma das demarcações territoriais em que se divida o Distrito Federal;
c) Os titulares dos órgãos político-administrativos das demarcações territoriais serão eleitos;
d) Para a eficaz coordenação das distintas jurisdições locais e municipais entre si, e destas com a Federação e o Distrito Federal no planejamento e execução de ações em zonas conurbadas limítrofes com o Distrito Federal [...], seus respectivos governos poderão criar comissões metropolitanas nas quais participem segundo o disposto em suas leis.

Fica implícito, pelo conjunto de referências constitucionais, que a gestão da conurbação do Distrito Federal com os seus municípios vizinhos do Estado do México não se faz por meio de uma entidade específica, mas de comissões metropolitanas que se reunem em forma voluntarista.

Todas as autoridade estaduais e municipais são eleitas diretamente.

Com cerca de 1.973.000 km2, o México tem 31 Estados, um Distrito Federal e 2.451 Municípios (incluidas as 16 Delegações do Distrito Federal que se assemelham a Municípios).

16 Ibid.

17 Art. 115, inciso VI.

18 Art. 122, diversos incisos.

Venezuela

A Constituição da República Bolivariana da Venezuela de 1999 só faz referência a áreas metropolitanas quando trata das competências municipais (ver adiante). Ela indica que o “território [nacional] se organiza em Municípios”19. O mesmo artigo determina que uma lei orgânica regulará a divisão político-administrativa, garantindo a autonomia municipal e a descentralização político-administrativa.

A Constituição também determina que uma “lei especial estabelecerá a unidade político-territorial da Cidade de Caracas integrada em um sistema de governo municipal em dois níveis: os Municípios do Distrito Capital e os correspondentes do Estado Miranda”20. O mesmo artigo determina que essa lei estabelecerá a organização, governo, administração, competência recursos para alcançar o desenvolvimento harmônico e integral da cidade, acrescentando que essa lei garantirá o caráter democrático e participativo desse governo.

A Constituição também determina como competência exclusiva de cada Estado a organização de seus Municípios e demais entidades locais21.

O Capítulo IV do Título IV se refere ao Poder Municipal e indica que “os Municípios poderão se associar [...] ou acordar entre si ou com os demais entes públicos territoriais a criação de modalidades associativas intergovernamentais para fins de interesse público relativos a matérias de sua competência22. O mesmo artigo indica, como complementação, que se determinarão por lei as normas concernentes ao agrupamento de dois ou mais Municípios.

O mesmo Capítulo estabelece regras gerais para que dois ou mais Municípios pertencentes a uma mesma entidade federal (Estado) que tenham relações econômicas, sociais e físicas que dêem a esse conjunto características de uma área metropolitana possam se organizar como distritos metropolitanos, dando normas para a sua aprovação23, mas não faz nenhuma referência à sua modalidade de gestão.

19 Art. 16.

20 Art. 18.

21 Art. 164.

22 Art. 170.

23 Art. 171 e 172.

A Lei Especial sobre o Regime do Distrito Metropolitano de Caracas (2000), em seu artigo 3o, repete a norma constitucional de que haverá dois níveis de administração: um nível metropolitano, formado por um órgão Executivo e um órgão Legislativo, cuja jurisdição compreende a totalidade territorial metropolitana de Caracas, e um nível municipal, formado igualmente por um órgão Executivo e um órgão Legislativo de cada Município integrante do Distrito Metropolitano de Caracas.

As atribuições do Distrito Metropolitano de Caracas estão bem definidas nessa Lei Especial24, mas têm similaridades com o disposto na Lei Orgânica do Regime Municipal (1989) para o nível municipal em geral. Por isso, ainda há algumas discussões sobre como conciliar essas atribuições no caso de Caracas.

Essa mesma Lei Orgânica do Regime Municipal estabelece mais diretrizes para os Distritos Metropolitanos25 e para as Associações Municipais (“mancomunidades”)26.

Todas as autoridade estaduais e municipais são eleitas diretamente.

Com cerca de 912.000 km2, a Venezuela conta com 23 Estados, um Distrito Federal (o Distrito Metropolitano de Caracas) e 335 Municípios.

Outros casos ilustrativos

Apenas como ilustração, vamos comentar alguns casos em Estados Unitários.

Bolívia, Nicarágua e República Dominicana

Nesses três países, o Município Capital foi desmembrado em mais de uma unidade territorial autônoma (novos Municípios), criando assim uma área metropolitana artificial para uma situação física real. Onde antes havia uma única autoridade local, agora há mais de uma, mas esse processo de desmembramento não estabeleceu nenhuma entidade coordenadora entre as novas autoridades locais. Por isso, há apreensão com respeito a possíveis conflitos territoriais na prestação de serviços à população, especialmente porque essa subdivisão territorial explicitou uma certa segregação socio-econômica, já que bairros homogeneamente mais pobres da cidade original se constituiram em Municípios autônomos, dificultando assim qualquer política de subsídios cruzados que pudesse existir.

24 Art. 19.

25 Art. 24 a 27.

26 Art. 28 a 31.

Chile

A Cidade de Santiago também foi desmembrada em Comunas que, junto com Comunas vizinhas, formou uma Área Metropolitana. No entanto, a esfera intermediária de governo (“Intendente Regional”) tem atribuições de autoridade metropolitana, no caso da Região onde se situa essa área metropolitana.

Colômbia

O Distrito Especial de Bogotá é ao mesmo tempo a Capital Nacional e a Capital do Departamento de Cundinamarca, além de ser um Município autônomo no mesmo nível dos demais municípios do País.

Entretanto, as autoridades locais de Bogotá vêm desenvolvendo o conceito de “cidade-região”, em conjunto com os municípios vizinhos, coordenando informalmente as suas atividades operacionais.

Costa Rica

A área metropolitana de São José se estende por diversos Municípios que mantêm uma intensa relação funcional-produtiva. Entretanto, não há uma autoridade metropolitana formal. Há estudos para um Plano de Desenvolvimento da Grande Área Metropolitana (GAM) que talvez considere essa alternativa.

El Salvador

A Capital Nacional – San Salvador – e 13 Municípios adjacentes constituíram um Conselho de Prefeitos/as da Área Metropolitana de San Salvador (COAMSS), combinando as competências dadas aos Municípios pela Constituição da República e pelo Código Municipal. Como uma primeira decisão, foi constituída uma autoridade de planejamento e gestão metropolitana (OPAMSS).

Em 1993, a Lei de Desenvolvimento e Ordenamento Territorial da Área Metropolitana de San Salvador e Municípios Adjacentes reconhece o COAMSS e a competência da OPAMSS, dando diretrizes adicionais para a gestão dessa conurbação.

Uma característica interessante neste caso é que os Municípios integrantes da Área Metropolitana delegaram à OPAMSS uma série de atribuições de gestão territorial, como a aprovação de urbanizações e edificações, que permitem uma gestão mais harmônica do conjunto metropolitano e garantem à OPAMSS uma boa arrecadação financeira pela prestação desses serviços.

Exceto em El Salvador, que possui uma autoridade metropolitana específica no caso da Capital (OPAMSS), na maioria dos demais casos mencionados para os Países Unitários os assuntos metropolitanos são tratados por uma dependência orgânica do Ministério de Habitação e Desenvolvimento Urbano ou seu similar.

Autonomia Municipal

Todas as Constituições dos Estados Federativos, e a maioria dos casos de Estados Unitários, estabelecem a “autonomia municipal” como um princípio básico da administração pública. Em termos jurídicos, há muita discussão sobre a extensão dessa autonomia, já que em diversos casos o governo local apenas regulamenta o que já está estabelecido na Constituição Federal e na Constituição do Estado ou Província. Diversos juristas insistem em que a maioria dos municípios latinoamericanos não é autônoma, mas sim autárquica.

No caso do Brasil, onde o Município é parte integrante da Federação, a Lei Orgânica de cada Município tem mais amplitude e realmente pode definir normas de auto-organização a partir das normas gerais constitucionais.

A autonomia política é um fato, já que as autoridades locais são todas elas eleitas por sufrágio universal. O sistema eleitoral varia um pouco, entre listas abertas ou fechadas, com ou sem quociente eleitoral por partido, etc.

A autonomia administrativa também é um fato, já que as autoridades locais contratam seu pessoal, bens e serviços; administram recursos de todo tipo; fazem acordos operacionais dentro de suas autonomias; podem tercerizar atividades, se assim quiserem. Devem prestar contas a alguma entidade do Poder Legislativo ou Executivo central sobre a correção e transparência desses processos.

A autonomia financiera já é mais duvidosa em alguns casos, apesar de que todas têm recursos próprios, mas estes geralmente não são suficientes para cobrir todas as necessidades operacionais e de investimentos. Estes recursos são geralmente complementados por transferências da esfera nacional e intermediária, que nem sempre são autompaticas ou programadas. De um certo tamanho populacional para baixo, os Municípios dependem cada vez mais dessas transferências para poder realizar seus programas de ação.

Quanto às atividades operacionais, nem sempre há convergência de prioridades de investimento nas regiões metropolitanas entre todas as esferas de governo, e as disputas de projetos acabam gerando um certo desperdício na aplicação dos recursos públicos. O conceito de “eficência do gasto social” ainda não está totalmente incorporado ao processo de planejamento integrado e de seleção de alternativas de investimento.

Há uma grande diferença de prioridades entre o que quer o Município-pólo da região metropolitana, em contraste com os Municípios do primeiro anel circundante do pólo e a perifeira externa da região. De modo geral, os Municípios-pólo se queixam da sobredemanda de seus equipamentos sociais por parte do restante da população metropolitana, pela falta de investimentos adequados ou oportunos nos anéis circundantes. Por outro lado, os Municípios circundantes e periféricos se queixam de ser cada vez mais o local de pouso de migrações do pólo por razões econômicas do valor da terra e moradia. Curiosamente, diversos Municípios-pólo também reconhecem que seus centros tradicionais se estão esvaziando e deteriorando.

Todo este processo de mobilidade dentro da regiçao metropolitana provoca uma pressão crescente sobre o sistema de transporte público, que nem sempre é integrado física ou tarifariamente no interior da mesma, já que o transporte intermunicipal, em geral, é normado pela instância administrativa supramunicipal.

Outro elemento muito relevante é a relativa facilidade para criar novos Municípios por desmembramento. Existem normas nacionais e existe um certo controle sobre este processo. Entretanto, quase sempre prevalecem os aspectos políticos sobre os técnicos; às vezes, esse desmembramento é indiretamente estimulado pela regras nacionais de distribuição das transferências financeiras aos Municípios. Raramente se dão processos de remembramento ou fusão municipal em busca de uma maior eficiência de custos.

Se por um lado a autonomia municipal é essencial para uma adequada gestão local, é também uma resistência natural para a aceitação de outra esfera administrativa intermediária na territorialização da Federação, especialmente quando esta criação de autoridade metropolitana aparenta ser mais uma desconcentração do Estado Federado que uma consorciação dos Municípios relevantes.

Há diversos casos interessantes, em estudo ou já existentes, onde as autoridades metropolitanas são constituidas a partir do associativismo municipal e recebem a incorporação de entes relevantes de outras esferas do governo: surgem assim os Consórcios, as Associações, as Agências de Desenvolvimento, etc, e poderiam surgir Empresas Multimunicipais ou Intermunicipais (à semelhança das multinacionais), se o respectivo marco nacional em cada país assim permitir.

ALGUMAS QUESTÕES PROPOSTAS PARA DEBATE

Dentro do contexto mencionado acima para os países Federativos da América Latina e o Caribe, e considerando-se a intenção de que este Seminário Internacional contribua com subsídios para a discussão de um novo marco normativo para a Gestão Metropolitana no Brasil, propõem-se algumas questões para o debate, enunciadas a seguir.

1. Essa autonomia municipal existente é sustentável? Vale a pena, do ponto de vista de toda a Federação, ter mais quantidade que qualidade de Municípios? Como combinar eficientemente esses dois atributos para maximizar o impacto de benefícios na prestação de serviços à população?
2. Que indicadores ou critérios poderiam ser utilizados ex ante para estimar com certa precisão o potencial de custo-benefício e custo-eficiência do Município candidato à autonomia, e a situação posterior do Município que perde uma parte de seu território, população e produção?
3. No caso de Consórcios, Associações e outras formas resultantes do associativismo intermunicipal, como facilitar e assegurar a transferência de recursos financeiros municipais para essas novas instâncias, de modo a dar-lhes fôlego financeiro adequado?
4. Será que, em cada uma das três esferas de governo (nacional/central, intermediária e municipal), o conjunto de atribuições e responsabilidades é corretamente “financiável” pelo conjunto de receitas próprias, incluidas as transferências mandatórias, automáticas e programadas? Será que o princípio de “subsidiaridade” está sendo aplicado de forma correta e a esfera competente mais local para prover os serviços está recebendo essa atribuição e os recursos adequados para a mesma?
5. Uma gestão metropolitana nascida da vontade política dos Municípios que compõem a região metropolitana, e estimulada política e financeiramente pelas esferas supramunicipais, não teria mais chances de sustentabilidade política e operacional?
6. Uma região metropolitana nascida de uma realidade temática premente (bacia hidrográfica, rede de ensino básico, rede de transporte público, rede de saúde preventiva, coleta e disposição final de resíduos sólidos, etc) não seria um caminho mais pragmático para começar uma gestão metropolitana mais convergente e coerente?
7. Dentro do conceito anterior, uma vinculação mais estreita entre “autoridade metropolitana” e “produtos” (prestação de serviços aos municípios) de sua gestão, não seria uma forma de superar as dificuldades políticas e induzir uma melhor aceitação da nova autoridade metropolitana por parte das autoridades municipais e da própria população contribuinte?
8. Dentro das tendências atuais de “governança participativa”, que soma indissociavelmente legitimidade, participação, transparência, eficiência e eficácia, dentro do que propõe a Campanha Mundial de UN-HABITAT para a Boa Governança Urbana, não seria interessante promover uma aliança maior para a gestão metropolitana em termos de uma efetiva parceria entre todas as esferas de governo e a sociedade civil organizada nessa mesma esfera territorial?
9. Finalmente, uma questão mais comportamental que técnica. Coordenar não é controlar nem comandar, mas facilitar, promover sinergias e convergências, induzir a objetivos de interesse comum, negociar eventuais compensações. Curiosamente, todos/as querem coordenar, mas ninguém quer ser coordenado/a.

Brasília, 30 de março de 2004.