A Cidade do Cabo: a gestão do governo metropolitano

Professor Nico Steytler

Diretor

Community Law Centre

University of the Western Cape

City of Cape Town (Cidade do Cabo)

Trabalho apresentado durante “O Desafio da Gestão das Regiões Metropolitanas em Países Federativos”, Fórum das Federações, Brasília, Brasil, 30–31 de março de 2004.

1. INTRODUÇÃO

Os últimos dez anos assistiram à transformação do governo local na África do Sul. O país passou de municípios pequenos e fragmentados, organizados segundo divisões raciais, para grandes municípios unificados, que buscam tratar das desigualdades do passado. No topo desse processo, estão os municípios metropolitanos, que se tornaram a verdadeira força motriz na questão do governo local, por contar com orçamentos vultosos e uma quantidade considerável de recursos. O atual sistema é novo: tem apenas três anos e ainda está em desenvolvimento. Os municípios metropolitanos enfrentam três tipos de desafio. Em primeiro lugar, como governar efetivamente as grandes populações metropolitanas e como implantar políticas integradas que atendam devidamente às necessidades, dentro de um paradigma de governo local que busca aproximar o governo do povo? Como os governos metropolitanos podem atingir o objetivo de aumentar a democracia local? Segundo, como cumprir a missão de prestar serviços de modo eficaz, eficiente e eqüitativo a todos os moradores? Terceiro, na qualidade de centros industriais e econômicos do país, como podem as cidades promover o desenvolvimento econômico e a criação de empregos? O presente trabalho focaliza uma das seis cidades metropolitanas da África do Sul, a Cidade do Cabo, examinando suas estruturas de gestão e a implantação de políticas territoriais integradas na tentativa de enfrentar esses desafios.

As políticas e práticas de gestão metropolitana da Cidade do Cabo devem, porém, ser inseridas no contexto mais amplo de transformação dos governos locais, em geral, e dos governos metropolitanos, em particular.

2. TRANSFORMAÇÃO DO GOVERNO LOCAL

Quando as primeiras eleições democráticas foram realizadas dez anos atrás, em abril de 1994, o governo local era uma instituição racista, que dava corpo à separação geográfica de negros e brancos. A comunidade negra era dividida, ainda, entre grupos de africanos, mestiços (coloured) e indianos, cada um com uma autoridade local diferente. Essas divisões raciais produziam desigualdades imensas na prestação de serviços: as comunidades brancas contavam com serviços de qualidade, enquanto as comunidades negras recebiam serviços de qualidade inferior ou até mesmo nenhum serviço. O governo local era o nível mais básico de governo, dentro de uma rígida estrutura hierárquica. Como organismo criado e regido por estatuto específico, sem autoridade própria, o município recebia o poder dos governos nacional e provincial, funcionando, em geral, como braço administrativo dos dois.

A transformação do governo local foi, assim, voltada à remoção do aspecto racial do governo e à sua transformação em veículo de integração da sociedade e redistribuição de recursos dos ricos à população pobre. Esse processo ocorreu em duas fases. A primeira, de caráter provisório, estabeleceu, em 1995 e 1996, municípios racialmente integrados, cujos governos ainda não eram eleitos de modo totalmente democrático. A segunda e última fase começou com a eleição do governo local em 5 de dezembro de 2000, estabelecendo os municípios atuais.

2.1 Fase provisória (1995/6 a 2000)

Uma primeira etapa consistiu na fusão de áreas de populações branca e negra em 842 municípios de transição, incluindo três câmaras metropolitanas (metropolitan councils). Também sinalizou uma mudança de status do governo local. A Constituição provisória de 1993 reconheceu os novos municípios como um dos níveis de governo. O governo local deixou de exercer poderes delegados pelos governos nacional e provincial para, em vez disso, exercer poderes conferidos pela própria Constituição. As câmaras municipais (municipal councils) eram assembléias legislativas cujos atos legislativos, que incluíam a imposição de impostos e tributos e a adoção de orçamentos, não estavam sujeitos à análise e aprovação administrativa.1

2.2 Fase final (dezembro de 2000)

A Constituição de 1996 elevou ainda mais o status do governo local. Como esfera distinta de governo, lado a lado com os governos nacional e provincial, ele não estava mais sujeito ao controle direto ou à direção destes. O maior status do governo local se expressa em uma série de disposições. Em primeiro lugar, seus poderes provêm da Constituição e são protegidos por ela. O município “tem o direito de governar, por iniciativa própria, os assuntos de governo local da sua comunidade, sujeito à legislação nacional e provincial, conforme o disposto na Constituição”.2 Da mesma forma, os governos nacional e provincial devem respeitar esse direito e “não podem prejudicar ou bloquear a capacidade e direito do município de exercer seus poderes ou desempenhar suas atribuições”.3 Contudo, as províncias são obrigadas a regulamentar, supervisionar e, em circunstâncias bem definidas, intervir em um município.4

Segundo, os poderes executivo e legislativo do governo local abrangem uma ampla gama de assuntos, incluindo os seguintes setores: redes de eletricidade e gás, turismo, planejamento, transporte público, obras públicas, abastecimento de água e serviços de saneamento, estradas e amenidades. Além disso, o município tem o direito de administrar certas questões de competência concorrente ou exclusiva dos governos provinciais “caso (a) tal questão possa ser administrada com mais eficácia localmente; e (b) caso o município tenha a capacidade de administrá-la”.5

Uma característica principal do governo local é a proteção constitucional da governança democrática. O objetivo primordial do governo local, colocado acima da prestação de serviços e metas relativas ao desenvolvimento, é o de “proporcionar às comunidades locais um governo democrático e responsável por seus atos”.6 A governança democrática prevista na Constituição deve ser realizada tanto pela representação quanto pela participação das comunidades locais.

1 Steytler, De Visser e Mettler 2000, 2.

2 Artigo 151(3) da Constituição.

3 Artigo 151(4) da Constituição.

4 Artigos 155(6), (7) e 139 da Constituição.

5 Artigo 156(4) da Constituição.

O espaço constitucional conferido ao governo local é voltado a um propósito: a prestação de serviços e a promoção do desenvolvimento. Assim, os objetivos do governo local incluem a prestação de serviços à comunidade de maneira sustentável, a promoção do desenvolvimento socioeconômico e a criação de um ambiente saudável e seguro.7

A Constituição conferiu poderes tributários consideráveis aos municípios, dos quais os mais significativos são os impostos sobre imóveis e as taxas de usuário. Como esfera distinta de governo, as políticas e a legislação determinam que o município é responsável pelo próprio bem-estar. Esse princípio está claramente estabelecido no Municipal Finance Management Act (Lei de Gestão Financeira Municipal) de 2004, adotado recentemente: “A responsabilidade primordial de evitar, identificar e resolver problemas financeiros em um município é do próprio município.”8 Além disso, não há qualquer garantia implícita que o governo nacional ou provincial vá se responsabilizar por casos de inadimplência dos governos locais.9

Os poderes e atribuições são distribuídos simetricamente aos municípios,10 classificados em três categorias. Há municípios metropolitanos (metropolitan municipalities), que exercem todos os poderes do governo local. Fora das áreas metropolitanas, estão os municípios locais (local municipalities), que, em alguns casos, se agregam, formando uma terceira categoria: a de municípios distritais (district municipalities). Os poderes do governo local são, então, partilhados entre os municípios locais e os distritais, sendo que estes últimos exercem um papel de coordenação e planejamento predominantemente.11

2.3 Demarcação de municípios e eleições de 2000

Em 2000, todo o território foi demarcado em municípios. A eleição de 5 de dezembro de 2002 estabeleceu seis municípios metropolitanos, 46 municípios distritais e 232 municípios locais. Esses municípios desempenham um papel significativo na governança do país, sendo responsáveis por 28% do total de despesas do governo, das quais 83% são financiadas com receita própria.12 As seis metrópoles dominam o cenário, abrigando 31% dos 42 milhões de habitantes da África do Sul e representando 75% do produto regional bruto (Gross Geographical Product–GGP). Elas não só respondem por 63% do orçamento municipal total, mas também pela saúde e bem-estar da nação.

3. GOVERNO LOCAL METROPOLITANO

Há dez anos, as cidades sul-africanas eram rigorosamente repartidas e governadas com base em divisões raciais. As autoridades brancas controlavam os centros urbanos e, assim, a base tributária mais forte. Os negros estavam confinados às periferias das cidades, recebendo pouco ou nenhum serviço municipal. Como raça e classe eram coincidentes, as cidades consistiam em centros de atividade comercial rodeados por vastas regiões pobres.13 Com o surgimento da democracia em 1994, o objetivo imediato foi o de estabelecer cidades integradas, em que os benefícios da base tributária central pudessem ser redistribuídos eqüitativamente às áreas anteriormente desfavorecidas. Ao mesmo tempo, depois de anos de isolamento, as cidades, na qualidade de centros de atividade econômica, precisavam se tornar competitivas mundialmente. A transformação da governança metropolitana também ocorreu em duas etapas.

6 Artigo 152(1)(a) da Constituição.

7 Artigos 152 e 153 da Constituição.

8 Artigo 135(1) de Local Government: Municipal Finance Management Act 2004.

9 MEC, Mpumalanga v Imata 2002 (2) SA 76 (SCA).

10 Para uma crítica à abordagem simétrica, ver Tapscott 2004.

11 Ver Steytler 2003b.

12 Essa situação contrasta radicalmente com a das províncias, que dependem de transferências do governo nacional para gerar 96% de sua receita.

3.1 1995/6 a 2000: câmaras metropolitanas fracas

Nos termos do Local Government Transition Act (Lei de Transição do Governo Local) de 1993, foi estabelecido um sistema metropolitano de dois níveis, com um centro fraco e subestruturas fortes, em Johannesburgo e Durban em 1995 e na Cidade do Cabo em 1996. Em 1996, uma emenda à lei visou a fortalecer a câmara metropolitana, com a listagem detalhada dos poderes e atribuições de cada nível. Entretanto, as duas esferas podiam negociar a realocação de poderes e atribuições, contanto que aspectos práticos, tecnológicos e econômicos fossem levados em consideração.14 Na prática, observou-se que o sistema produzia uma divisão custosa e ininteligível de atribuições e poderes.15 De modo geral, as metrópoles não redistribuíram (ou não conseguiram redistribuir) os recursos de subestruturas mais abastadas para as áreas mais pobres tão bem quanto havia sido idealizado anteriormente.

3.2 A criação de câmaras metropolitanas fortes

Assim que o sistema metropolitano de dois níveis foi estabelecido, começou o processo de criação da fase final do governo metropolitano. Em 1998, o governo elaborou uma proposta de políticas relativas ao governo local, que apresentava uma nova visão de governança das áreas metropolitanas.

A importância dessas áreas constituía o ponto de partida. Ao mesmo tempo em que geravam o grosso do produto interno bruto nacional, as regiões metropolitanas abrigavam uma grande (e crescente) população pobre, sem acesso a serviços básicos. A modalidade de governo urbano, concluía a proposta, era “um fator determinante fundamental para a futura prosperidade econômica e estabilidade social da nação”.16 Defendia, então, um governo metropolitano unificado e forte, com base em três considerações.17 Em primeiro lugar, em função do histórico de apartheid do país, era necessário redistribuir os recursos e serviços de forma eqüitativa por toda a área metropolitana. O passado havia se caracterizado por práticas de exclusão que empurravam a população pobre para as periferias, criando “bolsões de pobreza” nesses espaços. Um governo metropolitano forte seria capaz de fazer com que os benefícios atingissem todos os contribuintes da base tributária da metrópole. Segundo, era necessário que existisse um governo metropolitano para promover o planejamento estratégico de uso do solo e para coordenar investimentos públicos na infra-estrutura física e social. Para superar o legado deixado pelo regime de apartheid, era preciso que houvesse a integração espacial e formas de desenvolvimento voltadas à inclusão social. Terceiro, um governo metropolitano forte era necessário, também, para desenvolver uma estrutura de desenvolvimento econômico e social no âmbito urbano, que aumentasse a competitividade econômica e o bem-estar da cidade. A região metropolitana poderia, então, divulgar e comercializar a cidade como um todo.

13 Ver Steytler 2001, 54.

14 Cameron, 1999, 237.

15 Cameron 1999, 232.

16 White Paper on Local Government 1998, 61.

17 White Paper on Local Government 1998, 58-60.

A existência de um governo metropolitano unificado para grandes populações e regiões criaria distância entre os moradores e seus representantes políticos.18 O governo argumentou, porém, que, com os padrões de assentamento segregado da África do Sul, as instituições políticas pequenas só viriam a perpetuar as velhas divisões raciais. Foi, então, proposto que se delegasse autoridade a comitês menores, dentro da câmara metropolitana. A experiência com o sistema de dois níveis em Johannesburgo e Cidade do Cabo, em que se negociava a repartição de responsabilidades, convenceu o governo que essas negociações eram impulsionadas mais por considerações políticas que por questões administrativas.19 Por isso, a determinação da modalidade de delegação de atribuições e poder de decisão deveria ficar a critério da câmara metropolitana unificada.

Duas formas de descentralização foram propostas. Primeiro, a micro-descentralização poderia ocorrer de modo que cada distrito administrativo (ward) – área geográfica que elege um vereador (councillor) – fosse investido de poderes delegados, conferidos ao comitê local. Segundo, em uma escala maior, vários distritos administrativos poderiam ser agregados para formar uma subcâmara metropolitana, que, em função de seu tamanho, poderia receber maiores poderes administrativos e decisórios. Idealizou-se, então, que os poderes e atribuições relacionados à prestação conjunta de serviços ou estabelecimento do arcabouço de políticas com esse fim permaneceriam nas mãos da câmara metropolitana. Por outro lado, as atribuições relativas a assuntos que exigissem um alto grau de interação com a comunidade local seriam próprias para serem delegadas a subestruturas metropolitanas.20

O arcabouço legal resultante refletiu essa política.21 Para estabelecer um município metropolitano em uma região, era preciso que ela fosse considerada como:

(a) conurbação com áreas de alta densidade demográfica; movimentação intensa de pessoas, mercadorias e serviços; alto grau de desenvolvimento e multiplicidade de distritos comerciais e zonas industriais;
(b) centro de atividade econômica com uma economia complexa e diversa;
(c) área específica em que o planejamento integrado de desenvolvimento fosse desejável;
(d) área com conexões sociais e econômicas interdependentes e fortes entre as unidades constituintes.22

Todas as atribuições e poderes ficavam com a câmara metropolitana, que poderia, contudo, delegar alguns de seus poderes às subcâmaras metropolitanas. O comitê do distrito administrativo poderia ser estabelecido isoladamente ou em conjunto com as subcâmaras. Entretanto, os comitês dos distritos administrativos são, em geral, órgãos consultivos sem poderes executivos.23

18 Ver Kongwa 2001.

19 White Paper on Local Government 1998, 64.

20 White Paper on Local Government 1998, 66.

21 Local Government: Municipal Structures Act 117 of 1998.

22 Artigo 2.

3.3 Seis câmaras metropolitanas

O Municipal Demarcation Board (Conselho de Demarcação Municipal), entidade independente, optou pela criação de seis câmaras metropolitanas. A figura 1 enumera as cidades metropolitanas e respectivas populações, áreas e províncias onde estão situadas.

Figura 1: Cidades metropolitanas, tamanho da população, área e província

Cidade População (1996) Área Província

eThekwini (Durban) 2,7 milhões 2291 km2 KwaZulu-Natal

Johannesburgo 2,6 milhões 1664 km2 Gauteng

Cidade do Cabo 2,5 milhões 2498 km2 Western Cape

Ekurhuleni (East Rand) 2,0 milhões 1923 km2 Gauteng

Tshwane (Pretória) 1,6 milhão 2198 km2 Gauteng

Nelson Mandela 1 milhão 2198 km2 Eastern Cape

(Port Elizabeth)

Um efeito interessante foi que, na província central de Gauteng, pólo comercial e industrial da África do Sul, três municípios metropolitanos contíguos foram estabelecidos.

Pode-se notar a importância das metrópoles pelos seus orçamentos. O total de US$7,3 bilhões dos orçamentos referentes a 2002-03 representa 62,7 % do conjunto de todos os orçamentos municipais.24 Os orçamentos das metrópoles são apresentados na figura 2.

Figura 2: Orçamentos das câmaras metropolitanas 2002/3

Johannesburgo US$1,7 bilhão

Cidade do Cabo US$ 1,5 bilhão

EThekwini (Durban) US$1,4 bilhão

Ekurhuleni (East Rand) US$1,2 bilhão

Tshwane (Pretória) US$0,9 bilhão

Nelson Mandela (Port Elizabeth) US$0,4 bilhão.

A magnitude desses orçamentos fica evidente, se comparados com os orçamentos de 2002-03 das nove províncias. As três metrópoles de Gauteng ultrapassam o orçamento provincial; o orçamento de Johannesburgo é maior que os das três províncias menores. Enquanto o total de transferências do governo nacional para os governos locais representa 17% da receita destes, no caso das metrópoles, essas transferências correspondem a uma fração ainda menor: apenas 5% de sua receita operacional. Em função do alto grau de auto-suficiência, as metrópoles contam com grande autonomia na utilização de seus recursos. Essa situação contrasta radicalmente com a das províncias, cujos governos funcionam, em geral, como meros administradores dos programas nacionais de educação, saúde e seguridade social. De modo geral, foram estabelecidos seis municípios poderosos, rivais das províncias.

23 Ver o estudo Guidelines on Ward Committee, Department of Provincial and Local Government, 2003. Para comentários, ver Mettler 2004.

24 National Treasury, 2003. Utilizou-se uma taxa de câmbio de US$1 para ZAR6,50. Para obter mais detalhes, ver Steytler 2003a.

Deve-se analisar o governo da área metropolitana da Cidade do Cabo dentro desse contexto geral.

4. CIDADE DO CABO: A CIDADE METROPOLITANA EM EVOLUÇÃO

As origens da Cidade do Cabo remontam a 1652, quando a Companhia Holandesa das Índias Orientais estabeleceu um centro de abastecimento no extremo sul da África para a sua frota, que viajava rumo ao Oriente. Os 300 anos seguintes assistiram ao lento desenvolvimento de uma área metropolitana caracterizada por uma grande câmara municipal central, cercada de várias autoridades locais pequenas, organizadas com base em divisões raciais. Hoje em dia, a Cidade-mãe, como ela se autodenomina, busca superar a longa história de colonialismo e segregação (apartheid), para se tornar uma das grandes cidades do mundo.

4.1 Pré-1994: Autoridades locais fragmentadas e raciais

Quando a democracia surgiu em 1994, a área metropolitana da Cidade do Cabo se compunha de uma série de autoridades locais organizadas segundo linhas raciais.25 Os negros estavam confinados às áreas mais pobres, recebendo serviços de qualidade inferior (quando os recebiam), enquanto os brancos gozavam de serviços de alto padrão. Conforme a política da época, a comunidade negra era dividida entre mestiços (coloured) e africanos. Durante anos, a Cidade do Cabo deu preferência oficial à mão-de-obra mestiça, o que resultava, quase totalmente, na exclusão de africanos do mercado de trabalho local (a não ser como terceirizados). Essa política só foi modificada depois de uma longa e árdua batalha, que resultou no fim do estabelecimento de assentamentos africanos separados de áreas de população mestiça, a uma grande distância do centro da cidade. Existiam, assim, três áreas distintas em1994: áreas de população branca, organizadas em uma série de municípios; áreas de população mestiça, com autoridades locais limitadas; e áreas de população africana, regidas por governos municipais negros. A prestação de serviços se dava conforme a área: as áreas brancas dispunham da base tributária mais forte (incluindo o distrito comercial do centro e as zonas industriais) e dos melhores serviços; as áreas de população africana , sem base tributária, se encontravam na pior situação; e a situação das áreas de população mestiça se encaixava entre esses dois pólos.

4.2 Pós-1994: rumo ao governo metropolitano

Uma vez estabelecida no âmbito nacional, era preciso instituir a democracia no nível local. A principal plataforma política do partido da maioria, o Congresso Nacional Africano (ANC), era eliminar as divisões raciais do passado e atingir uma prestação eqüitativa de serviços. A redistribuição de recursos exigia a unificação de todas as autoridades locais na área metropolitana. O ANC defendeu, então, a criação de uma vasta região que incluiria as três cidades vizinhas de Somerset-West/Strand, Stellenbosch e Paarl/Wellington. Os municípios brancos resistiram, porque a adoção de uma estrutura voltada à inclusão implicava na redistribuição radical de seus recursos.

25 Havia 15 municípios brancos, um conselho regional de serviços, cinco autoridades locais negras, 26 Comitês Administrativos (para mestiços), um Conselho Administrativo e uma série de áreas sob a administração da província.

Mediante negociações políticas e a orientação do Provincial Demarcation Board (Conselho de Demarcação Provincial), os limites externos da nova área metropolitana incluíram, por fim, os arredores de Somerset West/Strand, mas não as cidades de Stellenbosch e Paarl/Wellington.26 O critério decisivo foi o fato de as áreas possuírem, econômica e historicamente, uma relação de interdependência com a região metropolitana.

Uma vez definidos os limites externos, o próximo obstáculo consistia na organização interna do governo metropolitano. Era necessária uma estrutura de dois níveis: uma câmara metropolitana de coordenação provida de diversas subestruturas, cujos poderes estavam sujeitos à negociação. Em função de considerações políticas e do medo que o ANC fosse dominar toda a metrópole, o modelo finalmente escolhido previa tanto uma forte câmara metropolitana quanto fortes subestruturas, com considerável autonomia operacional. A divisão da área metropolitana em subestruturas foi bastante problemática, devido à questão de determinar quem ficaria responsável pelas áreas pobres de população africana. Depois de negociações demoradas, intervenções federais e batalhas jurídicas, a área metropolitana foi dividida em seis subestruturas denominadas Metropolitan Local Councils–MLCs (Câmaras Locais Metropolitanas). Os municípios existentes foram agregados e o grande município da Cidade do Cabo foi dividido em dois. O ANC acabou sendo eleito em apenas duas das seis subestruturas, ficando as demais com os partidos da oposição.

O sistema de dois níveis da nova área não funcionou direito, seguindo a mesma tendência geral das outras duas áreas metropolitanas. Tanto a Cape Metropolitan Council–CMC (Câmara Metropolitana do Cabo) quanto as MLCs detinham poderes consideráveis, levando a embates sobre diversas questões entre os níveis. Até mesmo em relação à divisão de poderes em que a metrópole ficaria responsável pelo abastecimento de água bruta e as MLCs pela rede de distribuição, surgiram divergências na definição de tarifas da água bruta. A relação entre essas duas entidades era considerada competitiva, em vez de cooperativa. As dificuldades no desenho institucional foram exacerbadas pela dinâmica política. As duas MLCs mais fortes (Cidade do Cabo e Tygerberg) eram controladas pelo ANC, enquanto a CMC estava nas mãos do New National Party–NNP (Novo Partido Nacional). Ambas eram administrações bem providas de recursos, sendo que existia um grau de desconfiança em relação à nova CMC. Além disso, a CMC não efetuou a redistribuição de recursos com o devido uso da receita arrecadada a partir de um tributo sobre a folha de pagamento, que estava à sua disposição. Por fim, havia uma repetição de cargos graduados nas duas esferas.

Durante a fase final da transformação do governo local, o Municipal Demarcation Board (Conselho de Demarcação Municipal) nacional manteve os limites externos da área metropolitana. O estabelecimento da nova Unicity (Unicidade), como foi denominada, eliminou as seis MLCs.

4.3 Unicity27

O estabelecimento da nova Metrópole da Cidade do Cabo em 5 de dezembro de 2000 resultou na reorganização final das autoridades locais em uma estrutura unificada. Entretanto, a câmara metropolitana poderia, a seu critério, estabelecer subcâmaras com poderes delegados. Foi eleita uma câmara municipal com 200 vereadores, sendo que a metade deles foi eleita nos distritos administrativos e outra metade, com base na representação proporcional a partir de listas partidárias fechadas. Na eleição de 2000, o partido Democratic Alliance (Aliança Democrática), formado pelo Democratic Party–DP (Partido Democrático) e New National Party–NNP (Novo Partido Nacional) logo antes da eleição, obteve maioria.

26 Ver Cameron, 1998, 116ff.

27 Agradeço as informações sobre a evolução da governança das cidades, fornecidas por Nico McLachlan do ODA, antigo presidente da Unicity Commission.

No começo, a modalidade de governo se baseava no comitê executivo. A estrutura executiva principal consistia em um comitê executivo de dez pessoas, composto de todos os partidos políticos na proporção do número de cadeiras de cada um, tendo o prefeito como presidente. Depois que o NNP se separou do DA e emendas constitucionais possibilitaram que os vereadores trocassem de partido, ocorreu uma mudança de governo em novembro de 2002, quando o NNP e o ANC formaram uma coalizão governante. O novo prefeito veio do ANC; o vice-prefeito, do NNP. Com a mudança na governança política, houve, também, uma mudança institucional. A câmara adotou um sistema executivo centrado no prefeito, em que o mesmo, assistido por um comitê, era investido do poder executivo.

O fato de o prefeito pertencer ao ANC é revelador. A coalizão ANC/NNP suplantou, também o partido DA no parlamento da província de Western Cape. Como parte do acordo de coalizão, o cargo de primeiro-ministro de Western Cape ficou com o NNP e a prefeitura, com o ANC. Por que o ANC, maior partido de Western Cape, teria escolhido o cargo de prefeito em vez do mais alto posto provincial? A resposta talvez se encontre nos seguintes comentários de Peter Marais, que fez parte do gabinete provincial sob o NNP antes de se tornar o prefeito da Cidade do Cabo pelo DA:28 “Sou umas 20 vezes mais eficaz como prefeito de uma Unicity do que fui durante todo o tempo em que fui ministro [no governo provincial], e, durante a minha carreira, lidei com praticamente todos os setores.”29

4.4 Desafios

A nova metrópole encarou uma série de desafios importantes. Externamente, a Cidade enfrentou a pobreza, desintegração social e desigualdade racial.30 A área metropolitana abriga, atualmente, cerca de 3 milhões de pessoas, o que corresponde a aproximadamente 70 % da população de 3,9 milhões da província de Western Cape. A população cresce em ritmo acelerado, com a entrada de cerca de 1.000 pessoas por semana,31 das quais 47% provêm da província vizinha de Eastern Cape.32 A Cidade apresenta grandes disparidades de renda. O cenário urbano contém desde áreas muito ricas a grandes regiões faveladas, que demarcam, também, diferenças de renda e oportunidade. Em 30% dos domicílios, as famílias enfrentam dificuldades na obtenção de alimentos, índice que chega a 71% em regiões faveladas.33 Resumindo, 20% da população vive abaixo do nível mínimo de subsistência domiciliar e outros 12% vivem pouco acima dessa margem, estando assim vulneráveis a qualquer mudança na economia em geral. A distribuição da pobreza tende a seguir divisões raciais, com a população africana concentrada na categoria abaixo da linha de pobreza, a população mestiça situada nas faixas de renda logo acima e a população branca, nas faixas de maior renda. 34 O índice de desemprego é alto: mais de 300.000 pessoas estão sem trabalho.

28 Ele foi exonerado do cargo de prefeito devido a conflitos políticos internos do partido. Ver Smith 2002.

29 Marais, 2001.

30 Unicity Commission 2000, 6.

31 Hamana, 2004.

32 City of Cape Town (Cidade do Cabo) 1996, figura 4.

33 Van Ryneveld et al, 2003, pág. 3.

A conseqüência desse perfil econômico é que um setor considerável da população não tem como pagar por serviços básicos. Calcula-se que possivelmente um terço dos três milhões de habitantes dessa cidade seja incapaz de custeá-los.35 Historicamente, as áreas pobres também recebem pouco ou nenhum serviço básico como abastecimento de água, eletricidade e coleta de lixo.

Em resposta a esse desafio, a câmara metropolitana visa a políticas voltadas a três questões principais:

• redistribuição de serviços e uniformização de níveis de serviços;
• amenização da pobreza mediante a prestação gratuita de serviços básicos como abastecimento de água e eletricidade à população pobre;
• busca do crescimento da economia e criação de mais oportunidades de emprego.36

Internamente, a nova cidade enfrentou a tarefa monumental de integrar sete administrações (a CMC e as seis MLCs) em uma única estrutura unificada, o que significou a racionalização do quadro de 26.000 funcionários em 26 condições de serviço diferentes. Esses desafios se dão em um contexto financeiro que exige que a Cidade levante a maior parte de seus recursos.

Conforme mencionado acima, o orçamento de R9,7 bilhões (US$1,5 bilhão) da Cidade do Cabo é, depois de Johannesburgo, o segundo maior orçamento municipal do país. A Cidade é praticamente auto-suficiente com respeito ao seu orçamento operacional de R8,4 bilhões (US$1,3 bilhão),37 segundo demonstrado na figura 3:

Figura 3: Orçamento operacional de 2003/4

Sobretaxas de eletricidade 27.4%

Imposto Predial e Territorial 24.4%

Sobretaxas de água 8.6%

Outros serviços (saneamento, resíduos sólidos, etc.) 11.7%

Tributo sobre a folha de pagamento 8.8%

Outros (licenças, multas, etc.) 14.8%

Transferências 4.2%

Com um orçamento capital de R1.9 bilhão (US$300 milhões) em 2002/03, apenas 21% se originaram de transferências do governo nacional.38 O desafio é, então, conseguir atender a uma grande demanda por serviços municipais básicos, com a prestação gratuita de uma parcela considerável deles, a partir de recursos obtidos pela própria Cidade.

34 Van Ryneveld et al, 2003, pág. 4.

35 Van Ryneveld et al, 2003, pág. 7.

36 Ver City of Cape Town, 2002.

37 Fornecido por Diretor de Orçamentos, City of Cape Town (Cidade do Cabo), 4 de março de 2004. Foi utilizada uma taxa de câmbio de US$1 para ZAR6,50.

38 National Treasury, 2003, tabela C1.

5. A GESTÃO DA CIDADE DO CABO

Igualmente desafiadora foi a organização interna do município. Como governar, com eficácia e eficiência, uma grande população espalhada em uma vasta área, com problemas sociais e econômicos significativos, promovendo, ao mesmo tempo, a participação democrática?

5.1 A visão de governança

Em preparação para a unificação da cidade em dezembro de 2000, uma comissão multipartidária denominada Unicity Commission (Comissão da Unicidade) foi estabelecida em 1999 para delinear tanto as metas quanto a estrutura de governança da nova Cidade. A Comissão buscou lidar com a preocupação de que a transformação em Unicity resultaria em uma câmara distante e inerte, mal conectada com as comunidades locais. Assim, o ponto de partida da Comissão foi “equilibrar a necessidade de uma liderança metropolitana forte com uma forte participação e processo de decisão locais.” 39 A proposta incluía um estilo participativo de governo, assim como estruturas políticas no âmbito de subcâmaras. A administração deveria ser voltada, também, a processos de decisão descentralizados.

A primeira Câmara, controlada pelo partido DA, adotou as propostas e deu início à implantação das mesmas. A mudança de liderança política em novembro de 2002, dando poder à coalizão ANC/NNP, não alterou a visão geral de governança de maneira significativa. Um dos valores centrais da nova missão da Cidade é a “crença de que o governo da cidade precisa estar próximo do povo”.40 Além disso, para ser uma “cidade de credibilidade – uma cidade bem governada, que conta com a confiança de sua população”, é preciso introduzir “boas práticas de governança que aproximem o governo municipal das pessoas e que capacitem as comunidades”. De maneira concreta, o objetivo precisa ser o de “impulsionar a descentralização de forma bem planejada e aumentar a participação do cidadão no governo municipal, mediante diversas iniciativas locais.” Como essa visão é realizada na prática?

5.2 Organização política

Nos termos da legislação atual, a gestão política da Cidade é bastante centralizada. No centro, está o prefeito executivo, eleito por vereadores. Ele, por sua vez, indica dez vereadores para o comitê executivo da prefeitura. Os vereadores nomeados para o comitê exercem funções, a critério do prefeito, de acordo com o sistema tradicional de gabinete de Westminster. Cada membro do comitê executivo da prefeitura se encarrega de um comitê específico, responsável por um determinado setor ou área funcional.

A estratégia central de aproximar o governo municipal do povo se dá pela adoção de um sistema de subcâmaras e de governo de participação direta. O objetivo dessas subcâmaras, segundo afirma a Unicity Commission, é garantir a ação e prestação de contas local, a partir da atribuição de responsabilidade pela “supervisão, planejamento local e decisões normativas em relação aos serviços públicos, identificando necessidades e prioridades locais e facilitando a participação do público”.41

39 Unicity Commission 2000, 12.

40 City of Cape Town, 2002, Vision and Mission Statement.

41 Unicity Commission 2000, 12.

As subcâmaras receberam poderes restritos, introduzidos em 2001 pela câmara controlada pelo DA.42 O objetivo primordial dessa concessão de poderes foi a implantação da participação pública em nome da Câmara em uma gama limitada de assuntos, com o fim específico de identificar as necessidades e prioridades da comunidade. A Câmara deixou claro que “a intenção não é criar municípíos secundários.”43 Além da função de comunicação, foram também delegados às subcâmaras poderes restritos nos seguintes setores: decisão sobre agravos contra o Building Control Officer (Chefe do Controle de Construção), concessão de licenças comerciais para certos tipos de instalações médicas e entretenimento, concessão de licenças para o fornecimento de produtos alimentícios, concessão de licenças para estabelecimentos de venda pública de produtos alimentícios, controle de estabelecimentos de venda pública de bebidas, bem como decisões limitadas sobre o uso do solo e algumas medidas de controle de tráfego.

Dezesseis subcâmaras foram estabelecidas em 2001, agrupando de seis a sete distritos administrativos. Observou-se imediatamente que as subcâmaras coincidiam com os velhos padrões de ocupação territorial do apartheid: brancos, mestiços e africanos estavam, mais uma vez, organizados em grupos separados. Quando a coalizão ANC/NNP assumiu o governo, ela não eliminou o processo relativo às subcâmaras, mas também não o ampliou. Em vez disso, buscou colocar maior ênfase na comunicação com os distritos administrativos e na democracia participativa direta.44 Tanto as subcâmaras quantos os distritos administrativos seriam as instituições principais de consulta e planejamento para a introdução de programas adequados, no âmbito local. O número de subcâmaras aumentou para 20, sem acréscimo de autoridade. Em vez de ocupar uma função executiva direta, as subcâmaras passaram a exercer um papel consultivo, de apresentar recomendações à Câmara em nome de suas respectivas comunidades.45

O ímpeto central de aproximar o governo do povo se dá pelo fortalecimento do sistema de distritos administrativos e pela promoção da participação direta do público em processos decisórios centrais. Assim, o prefeito executivo deu início a um programa para escutar as demandas do povo, buscando tornar-se uma figura pública diretamente responsável à população.

5.3 Administração

Em contraste com a estrutura política unificada da Cidade, as sete administrações que ela herdou em dezembro de 2000 não foram ainda integradas em uma administração unificada e direcionada. O problema principal é a incapacidade de adotar e implantar um modelo administrativo coeso de governo metropolitano e prestação eficaz e eficiente de serviços.

O modelo administrativo recomendado pela Unicity Commission, em junho de 2000, diz respeito ao estabelecimento de um centro corporativo que compatibilize as atividades e serviços com a estratégia de desenvolvimento, facilite a gestão global da área e garanta a distribuição eqüitativa de serviços por toda a cidade.46 Esse centro ficaria responsável pela gestão do planejamento estratégico geral, plano integrado de desenvolvimento, estabelecimento e supervisão de níveis e padrões de serviço, gestão de desempenho e de contratos e planejamento e estratégia financeiros. O papel do centro seria o de “orquestrar, ao invés de comandar e controlar, descentralizando a autoridade de maneira considerável”.47

42 Ver lei complementar 20, Cape Town Subcouncil, setembro de 2001.

43 Deliberação da Câmara em “Council’s Vision, Principles of Management and Exco Portfolios”, C 09/02/01, http://www.capetown.gov.za/resolutions/ acessado em 4 de março de 2004.

44 City of Cape Town 2002, parágrafo 7.3.

45 Ver “What is a subcouncil”, http://www.capetown.gov.za/subcouncils/ acessado em 4 de março de 2004.

46 Unicity Commission 2000, 13.

Em relação ao modelo de prestação de serviços, existe a possibilidade de escolha. Na prestação de serviços municipais, os municípios podem optar entre mecanismos internos ou externos.48 O mecanismo interno se refere à prestação de serviços pela própria administração e quadro funcional do município. Os mecanismos externos dizem respeito a todos os demais prestadores de serviços, dos quais os mais importantes são as entidades municipais e as contratadas privadas. O município pode estabelecer uma entidade municipal, na qual ele seja o único acionista, a fim de “corporatizar” o serviço municipal. A entidade opera com base em princípios comerciais e presta contas ao respectivo município por meio de seu conselho de administração.

A Câmara Metropolitana de Johannesburgo optou pela “corporatização” dos serviços de abastecimento de água, eletricidade e processamento de lixo, constituindo sociedades de serviços públicos, tendo o município como único acionista. Celebram-se, então, contratos com as concessionárias de serviços públicos, conferindo a estas o controle operacional da prestação de serviços. Desse modo, é feita a separação entre a Câmara, no papel de órgão normativo, e as concessionárias, como prestadoras de serviço. A Câmara criou a Contract Management Unit (Unidade de Gestão de Contratos) para supervisionar os contratos.

A Unicity Commission recomendou um mecanismo interno de prestação de serviços. Diversas entidades prestadoras de serviços descentralizadas seriam estabelecidas na forma de Internal Business Units (Unidades Comerciais Internas) ou entidades “corporatizadas” semi-autônomas, ambas com com recursos vinculados. Essas unidades ou entidades seriam criadas para comercializar serviços de abastecimento de água, eletricidade, saneamento e descarte de lixo. Um grau considerável de poder decisório seria, então, descentralizado e passado para essas entidades, a fim de melhorar o atendimento às necessidades de serviços. O grau de descentralização dependeria tanto da natureza do serviço quanto da capacidade do setor. Vários departamentos de apoio seriam estabelecidos centralmente (recursos humanos, TI, etc.), para assistir as unidades ou entidades mediante contratos internos.

De modo geral, esse modelo administrativo exigia a integração vertical e a racionalização das sete unidades administrativas, a padronização das condições de serviço e a conclusão de um planejamento detalhado e contratação de equipe.49 Esse exercício levou a um total de 26.000 funcionários, trabalhando sob diversas condições de serviço .

Esse modelo de prestação e administração de serviços foi aceito no começo de 2001 pela câmara controlada pelo DA,50 que , no final daquele mesmo ano, decidiu implantar IBUs de abastecimento de água, eletricidade e gestão de resíduos sólidos. No entanto, antes que se pudesse dar início à implantação, a coalizão ANC/NNP assumiu o poder. Desde então, o futuro desse modelo permanece incerto. Enquanto isso, a prestação de serviços e alocação de recursos continua sendo administrada, na maior parte, pelas seis administrações existentes anteriormente. Assim, mais de três anos depois da fusão, a integração das administrações ainda está por ser realizada. O total de 26.000 aumentou para quase 30.000 funcionários, que continuam a lidar com condições de serviço diferentes. A falta de racionalização se evidencia na inexistência de processos trabalhistas significativos: até hoje, ninguém foi realocado.

47 Unicity Commission 2000, 13.

48 Artigo 76 de Local Government: Municipal System Act of 2000.

49 City of Cape Town 2002, parágrafo 7.5.3.

50 Deliberação da câmara em “Council’s Vision, Principles of Management and Exco Portfolios”, C 09/02/01, http://www.capetown.gov.za/resolutions/ acesso em 4 de março de 2004.

A incerteza quanto ao modelo administrativo a ser seguido decorre, em grande parte, de perspectivas ideológicas diferentes sobre a prestação de serviços. Dentro do ANC e, em particular, de seu parceiro sindical, COSATU, existe uma tremenda oposição ideológica à privatização. Qualquer passo em direção à “corporatização” é tido como uma preparação de terreno para a privatização. Sendo assim, a IBU é vista apenas como a precursora da “corporatização” de serviços rumo à privatização.

Um modelo alternativo é o de gestão de área, que requer a repartição horizontal de serviços em áreas geográficas delimitadas. Até agora, esse modelo não ganhou popularidade e não foram criados quaisquer vínculos entre as subcâmaras e as unidades administrativas. A necessidade de algum tipo de coordenação de serviços por área foi reconhecida pela Unicity Commission. Ela propôs um sistema de coordenação integrada de área para fazer com que as atividades relativas aos diferentes serviços fossem coordenadas e alinhadas no âmbito local. Os gerentes de coordenação de área seriam nomeados, recebendo a responsabilidade pela supervisão e alinhamento de serviços, sem responsabilidades gerenciais hierárquicas, porém.51

O atual hiato direcionou a atenção para aspectos internos, relativos a questões institucionais, ao invés de priorizar o lado externo, representado pelos resultados na prestação de serviços. No entanto, há medidas em curso para resolver o impasse mediante a formulação e adoção de uma política clara sobre o modelo administrativo adequado. Enquanto isso, a Cidade já desperdiçou três anos na tentativa de implantar um sistema administrativo claro e coerente. Embora continue com o mesmo modelo estabelecido em 1998, existe a expectativa de que a Cidade realize a prestação de serviços, como se já houvesse sido transformada para atender às necessidades de uma cidade unificada.

5.4 Distritos de melhoramento urbano

Existe uma nova tendência, contrária ao objetivo principal da Cidade de distribuir serviços eqüitativamente em toda a área metropolitana, mediante a redistribuição de recursos das áreas de população branca, anteriormente favorecidas, para áreas de população negra: o financiamento privado de serviços municipais extras nas áreas abastadas. Esse desdobramento teve início com o estabelecimento do Acordo de Parceria entre o governo metropolitano e a comunidade empresarial da Cidade do Cabo para o melhoramento da região. Ao verificar a deterioração dos centros de Johannesburgo e Durban e decorrente escoamento de capital para novos centros comerciais em Sandton e Umhlanga, respectivamente, a Cidade do Cabo se empenhou em preservar a viabilidade e interesse do centro da cidade para os investidores comerciais e empresariais. A Parceria exigia que a comunidade empresarial do centro da Cidade do Cabo pagasse tributos adicionais para combater a criminalidade e executar a limpeza da cidade a fim de atrair investidores. Em uma área claramente delimitada, denominada City Improvement District (Distrito de Melhoramento Urbano), prestam-se serviços de maior qualidade nas áreas de segurança e limpeza.

51 Unicity Commission 2000, 14.

Esse conceito de distritos de melhoramento acabou se espalhando para zonas residenciais e parques industriais.52 Se 75% dos contribuintes de uma determinada zona (tanto em termos numéricos quando em termos de valores arrecadados a partir do imposto predial e territorial) concordarem, uma contribuição compulsória adicional é acrescida ao imposto predial e territorial.53 A zona em questão forma uma entidade sem fins lucrativos para investir os recursos em serviços adicionais de segurança e outros tipos, segundo um acordo firmado com a Câmara Municipal. A parceria pode ir além da prestação de serviços. Em uma área comercial da periferia, o distrito de melhoramento aceitou construir uma estrada; a Câmara Municipal, por sua vez, se obriga a melhorar as instalações de transporte público na área.54

Em função da antiga desigualdade na distribuição de serviços municipais da Cidade do Cabo, o conceito de distritos de melhoramento enfrenta várias dificuldades. Existem preocupações sobre a possibilidade de que os distritos de melhoramento levem à fragmentação da cidade e ao surgimento de zonas hostis; de que a população abastada compre mais serviços e, de certa forma, privatize a sua área. Essa é uma forma mais branda de isolamento que a ocorrida em Johannesburgo, onde as zonas mais ricas tentaram instalar barreiras de proteção e controle de acesso. Não obstante, essa política só vem a aumentar as divisões e diferenças entre as áreas.

6 AVALIAÇÃO

A África do Sul deu início a uma experiência arriscada, com os grandes municípios metropolitanos. No decorrer de uma década, o país passou de cidades fragmentadas e divididas racialmente a estruturas unificadas. A instituição do governo metropolitano ainda é recente e a governança urbana e estilo de gestão se encontram em plena formação. No entanto, permanece a questão se houve algum avanço rumo ao cumprimento dos três objetivos dos municípios: aproximar o governo do povo; redistribuir recursos, fazendo com que a prestação de serviços alcance toda a população; e promover o crescimento econômico e a criação de empregos. Com base na análise acima, fica claro que a Cidade do Cabo ainda está lutando para desenvolver estruturas de gestão e estilos de política adequados para cumprir a sua missão.

A Cidade ainda tem um longo caminho pela frente antes de conseguir aproximar o governo do povo efetivamente. A comunicação com o público por meio de subcâmaras só está começando. Essas estruturas ainda não foram testadas quanto à sua capacidade de facilitar a participação popular na governança de maneira significativa, sem que as velhas divisões do apartheid sejam reforçadas. É improvável que elas conquistem a confiança e o apoio do público sem que tenham um grau considerável de poder de decisão. A conexão com as comunidades no âmbito dos distritos administrativos precisa ser fortalecida, incluindo o estabelecimento de comitês locais. A promoção da participação direta do público nos processos de decisão, mediante o aumento de procedimentos de consulta, é um empreendimento reconhecidamente difícil. As experiências recentes de participação do público na elaboração de planos integrados de desenvolvimento foram, muitas vezes, executadas para atender a requisitos legais e formais e não para obter o envolvimento efetivo das comunidades.

52 Die Burger 5 de março de 2004, pág. 8.

53 Ver City Improvement District By-Law of 2004, adotada em fevereiro de 2004 (Die Burger 27 fevereiro de 2004, pág. 8).

54 Die Burger 5 de março de 2004, pág. 8.

A inexistência de um modelo claro de prestação de serviços teve o efeito indesejável de concentrar a atenção do município em questões institucionais como objetivo final, em vez de enxergar o modelo como um meio de melhorar a prestação de serviços. O princípio central de governo metropolitano deve ser a base de referência na seleção do modelo adequado. O objetivo primordial é ir além da divisão horizontal de serviços rumo à integração vertical de serviços setoriais, na busca do planejamento, desenvolvimento e implantação de políticas e economias de escala abrangentes. A integração vertical de IBUs (unidades comerciais internas) para a prestação de serviços principais atende a esse critério.

A promoção do crescimento e a criação de empregos constituem um objetivo difícil de alcançar. É preciso criar uma infra-estrutura e um ambiente favoráveis ao investimento e ao turismo, o que, inevitavelmente, requer a presença dos distritos de melhoramento urbano. Sem os recursos adicionais proporcionados pela comunidade empresarial mediante o Acordo de Parceria, o centro da Cidade do Cabo poderia ter seguido o mesmo caminho que o distrito comercial central de Johannesburgo. Um centro dinâmico, limpo e seguro não só retém o comércio, como também abre espaço para a integração social da população da metrópole como um todo. As considerações econômicas favorecem, também, a expansão de distritos de melhoramento para as zonas industrias.

A utilização desse conceito em áreas residenciais é mais controversa e problemática. Ele embute as duas faces das cidades do Primeiro Mundo: por um lado, essas cidades abrigam e oferecem todos os confortos a uma classe abastada, capaz de pagar pelos serviços desejados; por outro, abrigam uma população pobre, que depende do governo municipal para a obtenção de serviços básicos gratuitos.55 No contexto da atual economia de mercado, os distritos de melhoramento constituem uma política inevitável na tentativa de atrair turismo e capital e de manter a competitividade perante o mercado mundial.

Para conseguir enfrentar os seus desafios, a Cidade precisa de duas coisas. Em primeiro lugar, ela precisa se dar conta de que não é possível lutar sozinha: é preciso que ela trabalhe junto com os governos provincial e nacional. A relação entre a Cidade e o governo provincial de Western Cape não pode ser caracterizada pela rivalidade, mas sim pelo apoio mútuo. Dada a importância da Cidade na província, a saúde e bem-estar de ambas resultarão de uma cooperação e alinhamento efetivos de políticas. As competências provinciais relativas à segurança, transporte e desenvolvimento econômico afetam a Cidade diretamente. Por outro lado, sem a Cidade, a província não é capaz de desempenhar sua função em relação à habitação. Já há evidência de cooperação em algumas áreas. Um cadastro conjunto de consultores foi estabelecido, assim como um conselho comum de turismo e marketing.

É fundamental, também, que exista uma relação construtiva com o governo nacional. Sob vários aspectos, as relações principais da Cidade são com departamentos nacionais dos setores de abastecimento de água, eletricidade e finanças. Além disso, o sistema de governo cooperativo requer que a Cidade participe de programas nacionais de desenvolvimento.

55 Steytler 2001, 54.

Segundo, o êxito depende da própria Cidade. Na Cidade do Cabo, a transformação rumo a uma cidade metropolitana tem sido lenta, com pouca integração e racionalização. Um fator determinante principal na formação de uma cidade verdadeiramente metropolitana é a necessidade de uma liderança metropolitana. A cidade metropolitana surgirá quando houver uma visão política que situe a cidade tanto no contexto local, que requer planejamento integrado e uniformização da prestação de serviços, quanto no âmbito mais amplo, que posiciona a cidade com base em uma perspectiva nacional e mundial. Os dirigentes da cidade ainda pensam, muitas vezes, a partir de uma perspectiva local e não metropolitana. Com freqüência, os interesses do eleitorado local acabam por prevalecer. A menos que pense como tal, a Cidade do Cabo não conseguirá se transformar em uma cidade metropolitana.

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