TRIBUTAÇÃO, GASTOS E COMPARTILHAMENTO NAS FEDERAÇÕES:

A EVIDÊNCIA DA AUSTRÁLIA E DO CANADÁ

Paul Boothe

[Do livro, Gestão fiscal nas federações, Paul Boothe, ed. Ottawa: Fórum das Federações, 2003]

1a PARTE: INTRODUÇÃO

Em sua obra clássica sobre of federalismo, em 1963, K. C. Wheare afirmou que, para que elas existam, as federações precisam satisfazer três pré-requisitos. O primeiro é que as comunidades envolvidas queiram um governo comum para alguns fins específicos, tais como a defesa, a redução de barreiras de comércio ou diminuição de custos de fornecimento de alguns serviços públicos. O segundo é que essas comunidades queiram manter governos regionais separados para outros propósitos, tais como a manutenção de cultura ou língua distintas ou a promoção de interesses econômicos divergentes. O terceiro é que essas comunidades disponham da capacidade de operar uma federação, com êxito.

O federalismo fiscal é o tema do presente artigo: um mecanismo chave, que sustenta a operação de federações por todo o mundo. Aqui, focalizo, particularmente, em duas federações que detêm divisões bem desenvolvidas de receitas e despesas, assim como sistemas de transferências de receitas em constante evolução que visam a lidar com os desequilíbrios entre os governos nacionais e provinciais como um todo e com os desequilíbrios entre os governos provinciais individuais.1

O artigo é organizado da seguinte forma: nas primeiras duas seções, examina-se a divisão de despesas e receitas nas duas federações; depois, discutem-se, primeiramente, as formas com que as duas federações tratam os desequilíbrios verticais – aqueles entre o governo nacional e as províncias como um todo – e, em seguida, as maneiras com que elas lidam com os desequilíbrios entre as províncias individuais. Um breve resumo conclui o artigo.

2a PARTE: A DIVISÃO DE RESPONSABILIDADES DE DESPESAS2

A divisão de responsabilidades de despesas e levantamento de receitas é, muitas vezes, disposta na constituição de uma federação. Embora a constituição possua, em geral, uma papel importante a preencher, a atuação dos governos nacionais e provinciais passa por uma evolução constante como resultado de mudanças nas condições externas e, em alguns casos, nas interpretações da constituição e convenções pelos tribunais.

a) Austrália

A Constituição australiana confere ao governo nacional (a Commonwealth) a jurisdição exclusiva de áreas como relações exteriores, defesa, imigração, comércio , moeda e uma série de programa sociais, incluindo as pensões, a seguro-desemprego e auxílio-família. Os governos provinciais (os estados) detêm a jurisdição sobre os assuntos que estavam sob o seu controle antes de sua adesão à federação: segurança pública, planejamento urbano, moradia e transporte. A Commonwealth e os governos estaduais compartilham a responsabilidade pelo financiamento da saúde e da educação.

Os tribunais australianos fornecem uma interpretação ampla sobre a disposição constitucional que permite à Commonwealth conceder subvenções aos estados, segundo termos e condições que ela julgar apropriados. Esse “poder de gasto” é utilizado, com freqüência, pela Commonwealth para influenciar as prioridades de despesa estaduais.3

Em termos de despesas diretas em programas, a Commonwealth gasta cerca de 54 por cento ou 124 bilhões de dólares australianos, de um total de 230 bilhões, deixando 46 por cento ou 106 bilhões de dólares australianos para os governos estaduais e locais juntos. Ao detalharmos os vários componentes das despesas (Figura 1), percebemos que a maior parte dos gastos da Commonwealth se concentra, principalmente, em duas categorias: gastos públicos gerais e dívidas e seguridade social. Os governos estaduais são responsáveis por mais de dois terços das despesas em educação, transporte e comunicações, moradia e serviços comunitátios. Portanto, os padrões de gastos efetivos estão, relativamente, bem alinhados com a divisão determinada pela Constituição australiana.

b) Canadá

No Canadá, a Constituição original foi estabelecida em 1867, sofrendo revisão substancial em 1982. A constituição original conferia ao governo federal a responsabilidade pela dívida pública, a regulamentação do comércio, os serviços de correio, a defesa nacional e a emissão de moeda. As responsabilidades provinciais incluíam questões como o endividamento provincial, a gestão e vendas de terras públicas (e, portanto, o controle dos recursos naturais), hospitais e educação. Com o decorrer do tempo, os tribunais afirmaram a existência de um “poder de gasto” federal, permitindo que o governo federal se envolvesse em áreas de jurisdição provincial, como a saúde.

Uma das importantes revisões feitas à Constituição em 1982 comprometeu os governos federal e provinciais à redução das disparidades regionais. O governo federal se comprometeu, ainda, ao princípio de efetuar pagamentos de equalização com o fim de “assegurar que os governos provinciais tenham recursos suficientes para oferecer níveis razoavelmente equiparáveis de serviços públicos com níveis razoavelmente comparáveis de tributação.” Isso dá caráter constitucional à exigência de que o governo federal lide com os desequilíbrios fiscais entre as províncias.

Uma análise da divisão de responsabilidades de despesas, no Canadá, mostra um padrão, em que as províncias são atores muito mais importantes que seus equivalentes na Austrália. Em contraste ao que ocorre na Austrália, os gastos provinciais e locais representam uma proporção muito maior do total, cobrindo 63 por cento (veja Figura 2). A análise dos componentes individuais de despesas mostra que o governo federal só possui predominância na área de serviços sociais – e, nesse caso, com aproximadamente 36 por cento do total fornecido pelos governos provinciais e locais.

Os governos provinciais e locais dominam, pesadamente, as áreas de saúde e educação. Fica claro que os proponentes da constituição de 1867 não previam o Estado moderno de bem estar social e, conseqüentemente, a importância da atribuição de responsabilidades de despesas aos governos provinciais e suas “subsidiárias”, os governos locais. Aliás, um desvio significativo da atribuição de responsabilidades de despesas pela Constituição original acontece no papel federal quanto aos serviços sociais – em grande parte, transferências a indivíduos em forma de pensões, auxílio-criança e seguro-desemprego.

3a PARTE: A DIVISÃO DE RESPONSABILIDADES SOBRE RECEITAS

As constituições federais, com freqüência, também dispõem sobre a divisão de responsabilidades sobre receitas entre os governos nacional e provinciais. As responsabilidades sobre recursos podem, também, evoluir ao longo do tempo devido a mudanças externas, convenções ou decisões jurídicas.

a) Austrália

A arrecadação de receita na Austrália é extremamente centralizada, em relação a outras federações também em estágio de maturidade. A Commonwealth arrecada a maior parte das receitas no país (69 por cento; veja Figura 3) e as compartilha com os estados por meio de subvenções condicionais e incondicionais. A Commonwealth ocupa, totalmente, os campos de imposto de renda de pessoa física e de pessoa jurídica. Curiosamente, os governos estaduais não estão proibidos de arrecadar imposto de renda de pessoa jurídica, mas, em vez de fazê-lo, transferiram esse poder para a Commonwealth durante o período da Segunda Guerra Munidal, em troca de subvenções.

Conforme a reforma tributária de 2000, o imposto sobre bens e serviços (GST) é arrecadado pela Commonwealth (por razões constitucionais) e, em seguida, passado aos estados. Os governos estaduais e locais detêm, totalmente, os campos de impostos territoriais e dominam os impostos de folha de pagamento. As receitas advindas da venda de recursos naturais pertencem aos estados, a não ser que os recursos estejam localizados em terrenos de propriedade da Commonwealth ou no exterior.

b) Canadá

Enquanto a federação australiana é altamente centralizada quanto à arrecadação de receita, a federação canadense tem um dos sistemas mais descentralizados de arrecadação de receitas de qualquer federação em estágio de maturidade. De fato, mais da metade (53 por cento; veja Figura 4) de todas as receitas são coletadas pelos governos provinciais e locais. O governo federal é dominante na arrecadação de ambos os impostos de renda de pessoa jurídica e de pessoa física, enquanto os governos provinciais e locais predominam nas áreas dos impostos de folha de pagamento e impostos territoriais. O imposto sobre vendas é compartilhado pelos governos federal e provincial, mesmo que os sistemas de impostos sobre vendas e arrecadação não sejam totalmente harmonizados em sete das dez províncias. A receita oriunda da venda de recursos naturais é incluída em outra categoria de receita e pertence ao governo provincial, se os recursos se encontram em suas terras, e ao governo federal, se os recursos estão em terras de sua propriedade, ou no exterior.

4a PARTE: LIDANDO COM OS DESEQUILÍBRIOS ENTRE OS GOVERNOS NACIONAL E PROVINCIAIS4

É inevitável que, nas federações modernas, a divisão de responsabilidades de despesas e receitas nunca seja feita de forma que ambas as esferas de governo possam se auto-sustentar completamente. De fato, há muitos fatores políticos e econômicos a serem considerados na determinação efetiva dessa divisão. Quando uma esfera de governo arrecada mais receitas do que o necessário para as suas próprias responsabilidades de despesas, diz-se que existe um desequilíbrio vertical. As transferências fiscais de uma esfera de governo para outra são utilizadas para tratar dos desequilíbrios verticais. Em algumas federações, transferências específicas são projetadas para lidar tanto com o desequilíbrio vertical quanto com os desequilíbrios entre as províncias, isto é, os desequilíbrios horizontais.

a) Austrália

Como resultado da centralização das responsabilidades sobre as receitas na Commonwealth, a Austrália possui um desequilíbrio vertical relativamente pronunciado (veja Figura 5). As transferências para lidar com esses desequilíbrios verticais são de dois tipos: as subvenções condicionais (chamadas de Specific Purpose Payments na Austrália – Pagamentos de Fim Especifíco), que têm condições específicas atreladas sobre como elas podem ser utilizadas; e as subvenções incondicionais (chamadas de Federal Assistance Grants – Subvenção de Assistência Federal). O total de transferências efetuado pela Commonwealth para lidar com desequilíbrios verticais era mais ou menos dividido pela metade entre as subvenções condicionais e incondicionais. Desde a reforma tributária de 2000, as subvenções incondicionais form substituídas pela alocação a cada estado de uma porção da receita derivada do imposto sobre bens e serviços (GST) arrecadada pela Commonwealth.

b) Canadá

Os desequilíbrios verticais são muito menores no Canadá que na Austrália, devido a maior importância, relativamente, da arrecadação de receitas pelas províncias (veja Figura 5). O programa principal utilizado pelo Canadá para lidar com os desequilíbrios verticais é o Canadian Health and Social Transfer – Transferência Social e de Saúde Canadense (CHST), cuja fim é contribuir ao custeio dos programas de saúde, educação de nível superior e assistência social. Embora o governo federal relacione, de forma conceitual, as transferências a certos objetivos, o programa impõe, na realidade, poucas condições às províncias e é, com freqüência, considerado um programa de transferências incondicionais. O governo federal também possui um grande número de programas de custo compartilhado, menores e condicionais, e que lidam com os setores de agricultura, transporte, moradia e outros. Todos requerem a participação da província e podem ou não resultar em transferências, em vez de gasto direto pelo governo federal.

5a PARTE: LIDANDO COM OS DESEQUILÍBRIOS ENTRE OS GOVERNOS PROVINCIAIS

Os desequilíbrios entre os governos provinciais podem surgir em conseqüência das diferenças na capacidade de levantar recursos (capacidade fiscal) ou em suas necessidades de despesas. Essas diferenças levam a desequilíbrios horizontais. Os programas de transferência que tratam dos mesmos constituem uma parte importante de muitas, mas não todas, federações em estágio de maturidade. A Austrália e o Canadá são duas federações que já têm, implementados, sistemas de “equalização” bem desenvolvidos, com o fim de lidar com os desequilíbrios horizontais.

a) Austrália

Na Austrália, a federação procura tratar das variações entre os estados, que resultam tanto das diferenças de capacidade fiscal quanto de necessidades de gasto. Para isso, modificam-se as alocações que cada estado recebe da receita advinda do GST em relação ao valor de GST que é arrecadado em cada estado. O sistema australiano de equalização é um esquema “líquido, isto é, as transferências são niveladas para cima ou para baixo a fim de que se possa obter o nível desejado de equalização.

O valor total de transferências para os estados é limitado pelo valor da receita obtida com o GST.5 A divisão da receita é determinada por meio de um processo complexo (mas bem definido) de comparação de 41 categorias de despesas e 18 categorias de receitas, a fim de calcular a “relatividade” de cada estado. Esse processo de “partilha do bolo” é comandado por um órgão não-partidário chamado de Commonwealth Grants Commission – Comissão de Subvenções da Commonwealth, que garante a precisão e probidade do processo e que revê e metodologia, a cada cinco anos.

b) Canadá

Diferentemente da Austrália, o programa de equalização, no Canadá, lida somente com as diferenças na capacidade de levantar recursos das províncias. Isso é feito mediante a comparação da capacidade fiscal das províncias em 33 categorias, em relação a um padrão formado por cinco das dez províncias canadenses (as cinco que se posicionam no meio da escala quanto à capacidade de levantar recursos). As províncias que se encontram abaixo da capacidade fiscal padrão recebem transferências de verba do governo federal a fim de trazer a sua capacidade ao nível padrão. As províncias que se encontram acima do padrão não recebem qualquer transferência de equalização. Assim, em contraste ao sistema australiano, o esquema canadense de equalização é um esquema “bruto”, no qual as províncias abaixo do padrão são equalizadas para cima, mas as províncias acima do padrão não sofrem reduções correspondentes nas transferências.

A distinção entre esquema líquidos e brutos de equalização tem implicações importantes quanto ao “risco” fiscal enfrentado pelo governo nacional. Em um esquema líquido como o da Austrália, o tamanho do programa é limitado pelo quantidade de recursos advindos do GST e o esquema de equalização é projetado, simplesmente, para fatiar o bolo entre os estados. O esquema bruto do Canadá determina tanto o tamanho quanto a divisão do bolo e apresenta mais risco inerente para o governo federal. Especificamente, se a disparidade entre as províncias cresce, o tamanho das transferências federais de equalização também cresce, aumentando a pressão sobre o tesouro federal. No esquema líquido da Austrália, o aumento de equalização para um estado é contrabalançado, em termos exatos, pela diminuição de equalização para outro.

Para tratar desse risco, o governo federal canadense implementou medidas ad hoc a fim de limitar o crescimento do programa (o teto) e substituiu o padrão baseado em todas as províncias pelo padrão baseado em cinco, somente, excluindo a província com a maior produção de energia. Para contrabalançar os riscos sobre as receitas para as províncias, o programa inclui uma disposição que estabelece um nível mínimo, limitando quanto as transferências de equalização podem diminuir no período de um ano.

Formalmente, o programa de equalização é de responsabilidade do governo federal e ele e a legislação correspondente é revista a cada cinco anos. Nesse ínterim, os representantes do governo federal e das províncias se reúnem, regularmente, a fim de analisar o andamento do programa e conduzir pesquisa contínua sobre possíveis modificações a serem discutidas durante as reuniões dos ministros federal e provinciais.

6a PARTE: RESUMO

As constatações principais, contidas neste breve ensaio, podem ser facilmente resumidas. As divisões de responsabilidades de despesas e receitas nas federações em estágio de maturidade são determinadas, principalmente, pela suas constituições e influenciadas por convenções e pelo histórico de interpretações jurídicas. Como fica demonstrado pelos exemplos da Austrália e do Canadá, federações bem sucedidas podem operar com divisões de responsabilidades de gasto e graus de centralização de receita bastante diferentes.

Desequilíbrios verticais significativos surgem, quando as responsabilidades sobre receitas são relativamente centralizadas, sem que as responsabilidades de gasto também o sejam. Os desequilíbrios entre os governos nacional e provinciais como um todo são corrigidos por meio de transferências que podem ser condicionais ou incondicionais. No Canadá, onde os desequilíbrios verticais são relativamente pequenos, essas transferências (CHST) são geralmente incondicionais. Na Austrália, onde os desequilíbrios verticais são relativamente grandes, essas transferências podem ser condicionais (Specific Purpose Payments) e incondicionais (receita do GST).

Os desequilíbrios horizontais, entre os governos das províncias, também representam uma questão importante nas federações. Ambos a Austrália e o Canadá possuem esquemas bem desenvolvidos para tratar de desequilíbrios horizontais e os mesmos são administrados profissionalmente e revistos periodicamente. Uma diferença chave entre os dois esquemas é o fato de que a Austrália tem um esquema líquido e o Canadá utiliza um esquema bruto. Essa diferença produz implicações significativas quanto ao nível de “risco fiscal” a ser encarado pelo governo nacional. A fim de lidar com o risco adicional que é inerente ao esquema bruto de equalização, o governo federal canadense implementou uma série de características ad hoc.

Referências

Boadway, Robin (1999) “State Taxes and Federal Revenue Sharing: The Canadian Experience and Lessons for Australia,” Neil A. Warren, ed., State Taxation: Repeal, Reform or Resignation (Sydney: Australian Tax Research Foundation), páginas 195-232.

Boothe, P., ed. (1996) Reforming Fiscal Federalism for Global Competition: A Canada-Australia Comparison (Edmonton, AB: University of Alberta Press).

Commission on Fiscal Imbalance (2001) Intergovernmental Fiscal Arrangements (Quebec: Governo de Quebec).

Rosen, H., P. Boothe, B. Dahlby e R. Smith (1999) Public Finance in Canada (Toronto, ON: McGraw-Hill Ryerson).

Searle, Bob (2002) “Federal Fiscal Relations in Australia – 2001,” extraído em 24 de julho de 2002, de http://www.icer.it/docs/wp2002/searle01-02.pdf.

Watts, Ronald (1999) The Spending Power in Federal Systems: A Comparative Study (Kingston, ON: Institute of Intergovernmental Relations).

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1. Federações diferentes utilizam nomes diferentes para seus governos nacionais e regionais. Neste artigo, utilizei o termo geral “província”para denotar governo regional.

2. Uma série de obras foram utilizadas como referência para a elaboração desta seção. Veja Boadway (1999), Boothe (1996) e Commission on Fiscal Imbalance (2000).

3. Veja Watts (1999) quanto à discussão relativa ao poder de gasto nas federações.

4. Veja Rosen et al. (1999), capítulo 6, para uma discussão sobre o sistema canadense de transferências. Serle (2002) fornece uma descrição atualizada do sistema australiano.

5. A reforma tributária de 2000 conferiu, também, aos estados garantias de que as transferências não sofreriam quedas abaixo dos níveis especificados.