PROCESSOS DE AJUSTE DAS RELAÇÕES FINANCEIRAS FEDERAIS: EXEMPLOS DA AUSTRÁLIA E DO CANADÁ

R. L. Watts

[Do livro, Gestão fiscal nas federações, Paul Boothe, ed. Ottawa: Fórum das Federações, 2003]

1a PARTE: CONTEXTO E QUESTÕES

a) A importância dos processos de ajuste das relações financeiras federais

A alocação de recursos financeiros a cada nível de governo dentro de uma federação é um fator fundamental para o seu funcionamento eficaz. É a alocação desses recursos que permite ou limita os governos, no exercício das responsabilidades legislativas e executivas que lhes são atribuídas pela constituição. Ademais, os poderes sobre os impostos e despesas são instrumentos fundamentais que afetam a habilidade de vários governos de influenciar e regularizar a economia dentro de uma federação.

A questão, entretanto, não consiste somente na definição constitucional dos poderes sobre impostos e gasto e das transferências intergovernamentais. Tendo em vista que os valores das diferentes fontes de receitas e os custos das diversas responsabilidades de gasto mudam, inevitavelmente, com o decorrer do tempo, não se pode esperar que qualquer alocação financeira da constituição seja permanente. Conseqüentemente, todas as federações enxergam a necessidade de estabelecer processos e instituições com a finalidade de ajustar, periodicamente, as relações financeiras intergovernamentais. Dentre os elementos que exigem ajustes constantes estão: os desequilíbrios verticais resultantes das alterações nas exigências relativas à receita e aos gastos de cada nível de governo; os desequilíbrios horizontais quanto à capacidade de levantar recursos e às necessidades de despesas das diferentes unidades constituintes, advindos de diferentes ritmos de desenvolvimento; a conseqüente necessidade de ajustar as transferências intergovernamentais a fim de reagir a esses desequilíbrios que mudam constantemente; e a necessidade de ajustar acordos para a coordenação tributária em vista das mudanças de condições.

Por conseqüência, uma característica marcante de acordos financeiros intergovernamentais em todas as federações é o processo constante de negociação e barganha entre os governos em relação a esses ajustes. Nesse processo contínuo, é necessário acomodar os conflitos entre os níveis federal e provincial (estadual), os conflitos entre as províncias (estados) pobres e ricas, os conflitos entre os interesses diversos das diferentes províncias (estados) e os conflitos entre os partidos políticos.

b) A importância do contexto

Embora a necessidade de haver processos que permitam o ajuste periódico de correção dos desequilíbrios verticais relativos à despesa e à receita, dos desequilíbrios horizontais, das estruturas de transferências e da coordenação de impostos seja comum a todas as federações, as diferenças de cada contexto afetam a forma específica com a qual tais processos de ajuste ocorrem em cada federação.

O ajuste das relações financeiras federais não pode, portanto, ser considerado, de modo puramente analítico e técnico e de forma isolada do contexto social, político e constitucional específico, no qual elas existem. Os processos e a dinâmica de ajuste das relações financeiras federais são impactados pelo grau e tipos de fragmentação e diversidade social e pela estrutura particular das instituições políticas com as quais a interação ocorre: por exemplo, o grau e os tipos de diversidade social (linguística, étnica, religiosa, cultural e histórica), como essa diversidade é distribuída territorialmente e se ela é reforçada incrementalmente, porque, se não, atravessá-la exercerá uma influência significativa.

Os tipos de organização política e constitucional variam, consideravelmente, nas diversas federações. As variantes incluem o grau de centralização ou descentralização legislativa e administrativa, a alocação constitucional original de poderes tributários, responsabilidades de gastos e disposições sobre transferências financeiras, o grau de interseção de determinações constitucionais ou de jurisdições concorrentes na administração da legislação federal pelos governos estaduais, o grau com que a organização financeira do governo local está prevista na contituição ou simplesmente deixada a critério dos governos provinciais (estaduais), o grau de colaboração, interação e autonomia entre os governos e o grau com que o governo de unidades constituintes participa ou influencia a criação de políticas por parte do governo federal. Esses fatores afetam a organização das relações financeiras entre os governos e seus processos de ajuste.

A dinâmica da negociação intergovernamental relacionada ao ajuste de relações financeiras também é influenciada pelo grau com que a separação dos poderes executivo e legislativo ocorre em cada nível de governo, como nos sistemas presidencial e de congresso dos Estados Unidos e federações latinoamericanas, nos sistema de colegiados executivos da Suíça ou pela fusão executivo-parlamentar de várias federações européias e da Commonwealth. Nas federações parlamentaristas, a tendência comum de predominância do executivo em suas legislaturas significa que a arena principal para a negociação de ajustes da organização financeira consiste em processos de “federalismo executivo”, que focalizam na representação pelos executivos das unidades de governo federal e provincial (estadual).

As diversas configurações da interação de fatores tendem a necessitar processos próprios e distintos de ajuste das relações financeiras intergovernamentais. Por isso, as soluções técnicas financeiras que não levam em conta a sua interação com o contexto social, econômico, político e constitucional tendem, na prática, a ser contraproducentes.

c) Questões levantadas pelos processos de negociação financeira intergovernamental

Várias questões emergem, com freqüência, dos processos de ajuste das relações financeiras intergovernamentais. Uma delas diz respeito à conciliação da necessidade de flexibilidade a fim de possibilitar a adaptação às mudanças de condições, com a necessidade de se oferecerem estruturas estáveis que permitam aos governos planejar antecipadamente. Outra questão se refere ao impacto que as mudanças nas estruturas financeiras podem exercer sobre o grau de centralização e descentralização dentro da federação. Ademais, há a questão de que o impacto das mudanças possa reduzir ou aumentar a autonomia ou dependência de um nível de governo em relação a outro. Mais uma questão, ainda, é se os ajustes são obtidos através de colaboração das diferentes esferas de governo, em trabalho conjunto, ou se são criados unilateralmente pelos diversos governos.

Um tema, em particular, que surge nas federações, é se o poder de gasto de cada esfera de governo fica limitado à jurisdição legislativa e executiva que lhe é determinada na Constituição ou se, para fins de flexibilidade, tal poder permanece amplamente irrestrito. Na maioria das federações, entende-se que os governos dispõem de um poder geral de gasto, como resultado de análise jurídica e convenção nas federações mais antigas ou como definição explícita nas constituições de várias das novas federações (Watts 1999b). Isso permite que os governos federais aproveitem o fato de o poder de gasto ser geral para buscar seus próprios objetivos nas áreas de jurisdição local e estadual por meio de uma provisão condicional das transferências de verba ou subvenções equiparadas a fim de induzir os governos locais ou estaduais a fornecer serviços ou cumprir padrões com os quais eles não poderiam arcar, de outra maneira. Apesar de amplamente utilizada em várias federações para possibilitar a flexibilidade e a colaboração intergovernamental, essa prática tem sido, muitas vezes, controversa, sendo vista como uma maneira de distorcer as prioridades locais e estaduais e de subverter a sua autonomia. Conseqüentemente, em algumas poucas federações, o exercício do poder federal de gasto nas áreas de jurisdição exclusiva da província (estado), requer o consentimento de representantes das unidades constituintes, quer seja por meio de seus representantes na câmara legislativa federal secundária ou por meio de negociações intergovernamentais.

Em linhas gerais, há dois modelos contraditórios de ajuste de estruturas financeiras federais. Um deles consiste na abordagem centralizada baseada na premissa de superioridade do governo federal quanto à direção da economia nacional e, portanto, lhe conferindo um papel predominante e até unilateral no ajuste da organização financeira. O outro modelo se refere à abordagem federalista que presume que os estados ou províncias devam participar das decisões sobre mudanças que afetem a sua independência fiscal e, que, portanto, requer acordos mútuos entres os governos de uma federação nos processos de ajuste dos acordos financeiros. Na prática, há, muitas vezes, elementos de ambas as abordagens, com essa última se contrapondo à primeira.

d) Procedimentos de ajuste das relações financeiras

Quanto aos procedimentos, propriamento ditos, de ajuste das relações financeiras intergovernamentais, quatro padrões típicos podem ser identificados (Watts 1999a: 53-5 e Tabela 13). Na Austrália, Índia e África do Sul, mesmo que de formas diferentes, há comissões permanentes ou periódicas de especialistas independentes que foram estabelecidas pelo governo federal e cuja tafera principal é a de definir mudanças à formula de distribuição e de recomendá-las ao parlamento federal. Um segundo padrão, encontrado no Paquistão e na Malásia, é o estabelecimento, pela Constituição, de um conselho intergovernamental composto de representantes federais e estaduais como fórum principal de obtenção de acordos quanto a modificações periódicas das estruturas financeiras. Um terceiro padrão é visto na Alemanha, Suíça, Áustria, Estados Unidos e Bélgica, onde as subvenções aos estados são definidas pela legislatura federal com a participação formal e efetiva dos governos, legislaturas e interesses estaduais nas instituições federais que determinam essas transferências. Um quarto padrão é encontrado no Canadá, onde a determinação das transferências financeiras cabe, fundamentalmetne, ao governo federal cujo legislatura não contém representação efetiva dos governos provinciais e seus interesses. Embora essa seja a situação formal no Canadá, a importância das questões finaceiras intergovernamentais faz com que, na prática, as relações financeiras entre os governos federal e provinciais sejam tema de longas discussões fora da arena parlamentar, por parte de vários comitês de ministros e oficiais federais e provinciais, e fonte de muita polêmica política entre os governos federal e provinciais (Bird 1994: 304-305).

e) As Experiências do Canadá e da Austrália

Ao considerar os processos de ajuste dos acordos financeiros federais, o presente artigo examina, especificamente, as experiências do Canadá e da Austrália. Esses dois países têm certas características em comum (Bird 1994: 309-310). Possuem origem histórica semelhante que consiste na agregação de antigas colônias britânicas. Ambos utilizam o sistema parlamentarista britânico nos dois níveis de governo, fazendo com que os problemas entre o governo federal e as províncias sejam resolvidos, principalmente, por meio de processos adversários de “federalismo executivo”. Os dois países têm um número pequeno de províncias (estados), mas são dominados por duas províncias ou estados que, em conjunto, detêm a maior parte da população federal. Em ambos, a alteração formal da constituição tem sido difícil de efetuar e, portanto, a adaptação teve de ser realizada por meio de outros processos evolutivos.

No entanto, há, também, diferenças marcantes em suas organizações financeiras federais. Os poderes tributários assim como a autoridade legislativa e administrativa são muito mais centralizados na Austrália que no Canadá. Embora ambos disponham de transferências de equalização , a Austrália dá uma ênfase maior à eqüidade, enquanto o Canadá favorece a autonomia provincial. O Canadá possui diferenças regionais mais pronunciadas e, além disso, não existe, na Austrália, um equivalente à província de Quebec, que é linguística e culturalmente distinta do resto do país. Não supreende, portanto, que haja diferenças consideráveis nos processos de ajuste das relações financeiras federais nessas duas federações.

2a PART: A EXPERIÊNCIA DO CANADÁ

a) O contexto

Quando a federação do Canadá foi efetuada, em 1867, ela se tornou a primeira no mundo a combinar instituições federais a instituições parlamentares à maneira de Westminster. Criou-se, assim, um dinâmica política bastante distinta da de federações mais antigas que não possuíam executivos parlamentares, como as estabelecidas nos Estados Unidos e na Suíça. O modelo canadense suscita interesse, porque uma série de federações que foram estabelecidas desde então, tanto na Commonwealth quanto na Europa, conjugaram as instituições federais e parlamentares. Elas incluem a Austrália, Índia, Paquistão (durante certos períodos), Malásia, Nigéria (durante um período), Alemanha, Bélgica e Espanha.

Em relação às alocações de receitas na constituição do Canadá, tanto os governos federal e provincial possuem amplos poderes tributários nas áreas de imposto de renda de pessoa física e jurídica e de impostos sobre vendas. O resultado é que há uma sobreposição de jurisidições fiscais que fazem com que o sistema fiscal seja bastante complexo. O acesso ao imposto de renda (de pessoa física ou jurídica) e aos impostos sobre vendas permitiu aos governos provinciais a financiar uma grande parte de suas despesas com suas próprias receitas. Entretanto, já que o governo fedeal também tem acesso a essas mesmas fontes de impostos, sempre houve uma discrepância entre a capacidade de arrecadação de receitas por parte das províncias e suas vastas responsabilidades de gasto, que incluem áreas extensas e caras como a saúde, a educação e os serviços sociais.

Há, também, diferenças consideráveis de tamanho, população e riqueza econômica entre as províncias, resultando em variações entre elas quanto à capacidade de levantar recursos e às necessidades de despesa. Conseqüentemente, se desenvolveu um sistema complexo e extenso de transferências intergovernamentais. Entretanto, não há, com uma única exceção, disposição constitucional que regule essas transferências. A exceção é a inclusão na Constituição (efetuada em 1982) do compromisso com um conjunto de princípios (mas não a fórmula detalhada) que é a base do sistema de equalização . A Seção 36(2) da Lei Constitucional, 1982, compromete o governo federal ao “princípio de realizar pagamentos de equalização a fim de assegurar que os governos provinciais disponham de receita suficiente para fornecer níveis razoavelmente equiparáveis de serviços públicos com níveis razoavelmente comparáveis de tributação”. Fora isso, em termos constitucionais, a autoridade constitucional final para determinar as transferências financeiras cabe ao governo federal e ao Parlamento. O escopo possível de tais transferências pode ser expandido pelo fato de que a interpretação jurídica da Constituição confere ao governo federal amplo arbítrio sobre como ele decide utilizar o seu poder de gasto para objetivos dentro das áreas de jurisdição exclusiva das províncias, apesar de não haver uma disposição constitucional explícita sobre “o poder de gasto federal” (Watts 1999b: 3-6).

Ao analisarmos os processos de ajuste de relações financeiras no Canadá, é importante fazer a distinção que existe entre o que está disposto na Constituição e o que, realmente, acontece. Em termos estritamente constitucinais, o governo federal canadense é colocado em uma posição de predominância, tanto em relação ao escopo de sua jurisdição legislativa e executiva quanto em relação à alocação e ao ajuste de finanças. Na prática, porém, devido à diversidade econômica, linguística e cultural, as forças políticas fortaleceram tremendamente, no decorrer dos anos, o poder político dos governos provinciais. Nos processos de ajuste das relações financeiras, apesar de a autoridade constitucional caber, na verdade, ao governo federal, ele vê que é politicamente necessário obter acordos com eles quanto às transferências intergovernamentais e até quanto a alguns aspectos da política fiscal.

b) Os processos de negociação financeira intergovernamental

Já que uma alteração formal significativa da Constituição em resposta a mudanças nas circunstâncias sociais e econômicas demonstrou ser bastante díficil, no Canadá, os acordos financeiros entre o governo federal e as províncias se desenvolveu, em grante parte, através de processos não constitucionais de relação intergovernamentais. O “federalismo executivo”, isto é, as negociações entre os executivos de cada esfera de governo, produziu ajustes aos acordos de transferências financeiras do governo federal para as províncias. Esses ajustes capacitaram o governo federal a buscar alcançar objetivos de políticas em áreas de jurisdição exclusiva das províncias e, ao mesmo tempo, possibilitaram às províncias um papel significativo no planejamento e financiamento de programas que atendem aos objetivos de âmbito nacional do governo federal canadense.

Esses processos são suficientemente flexíveis para acomodar muitas das necessidades específicas de cada província, apesar de existir uma tensão nos acordos, causada pela preocupação de Quebec com a obtenção de um maior grau de autonomia fiscal e de criação de políticas e das províncias maiores e mais ricas como Ontário e Alberta com a liberdade de seguir as suas próprias estratégias econômicas.

Em linhas gerais, dois conjuntos de transferências para as províncias foram desenvolvidos. Um, que pretende lidar com os desequilíbrios fiscais, se transformou, no decorrer dos últimos quarenta anos, de um conjunto de programas de custo compartilhado relativos, separadamente, às áreas da saúde, ensino superior e assistência social, em uma única transferência em bloco—a Canada Health and Social Transfer (CHST - Transferência Social e de Saúde do Canadá), instituída em 1996-7. As transferências constitucionais de custo compartilhado que, muitas vezes, utilizavam fórmulas de 50% de compartilhamento, foram abandonadas por saúde e ensino superior em 1977 e pela assistência social em 1996. Agora, as transferências CHST são, basicamente, transferências iguais per capita, com a finalidade de auxiliar as províncias no financiamento dos programas de saúde, ensino superior e assistência social. As condições vinculadas às transferências são tão gerais que fazem com que elas sejam de caráter incondicional, praticamente (Watts 1999b: 58).

O segundo conjunto de transferências que foi elaborado diz respeito às transferências de equalização totalmente incondicionais com a finalidade de auxiliar as províncias de baixa renda. Elas também se desenvolveram desde o período logo após a Segunda Guerra Mundial, como conseqüências das negociações intergovernamentais. O sistema canadense de equalização sempre se concentrou na equalização das diferenças de capacidade tributárias nas províncias. Não há esforço de equalizar as diferenças relativas às capacidades ou necessidades de gasto das províncias. Ao longo dos anos, o sistema tributário de representação utilizado pelas províncias, que calcula as transferências de equalização com base na habilidade que uma província tem para arrecadar recursos através de um certo conjunto de bases tributárias, foi modificado em vista da experiência prática. Agora, ele leva em consideração mais de quarenta bases tributárias para definir uma base tributária comum contra a qual se pode medir a capacidade tributária de uma província. Essa base tributária comum deriva de um conjunto representativo de cinco províncias (exceto Alberta e as quatro províncias atlânticas devido a suas circunstâncias especiais, geradoras de distorções). As províncias que estão acima do padrão não recebem nada (por exemplo, Alberta, Ontário e, na maioria dos últimos anos, Colúmbia Britânica), enquanto as províncias que estão abaixo do padrão se qualificam a receber transferências.

Embora a CHSTe as transferências de equalização em bloco representem, agora, a maior parte do total de transferências (acima de 85 por cento, em geral), há, ainda alguns programas menores e bem mais específicos de custo compartilhado, tais como transporte rodoviário, imigração e infraestrutura (Vaillancourt 2000: 209.)

Em relação aos processos que deram origem a esses acordos, o ponto chave a se notar é que, mesmo que eles tenham sido implementados pelo governo federal sob a sua autoridade constitucional, a evolução de tais acordos resultou de negociação e barganha intergovernamental intensas. Em relação a ajustes nos acordos financeiros, muitas dessas deliberações ocorreram em reuniões freqüentes de ministros financeiros (dos governos federal e provinciais), complementadas por um número ainda maior de reuniões no nível burocrático, entre os servidores públicos dos governos federal e provinciais. Uma característica marcante é que, mesmo quando as negociações giravam em torno dos programas de saúde, ensino superior e assistência social, foram os ministros financeiros e seus burocratas nos níveis federal e provincial do governo que dominaram o processo. Entretanto, reuniões setoriais de outros ministros e burocratas foram, ocasionalmente, envolvidas, também. Quando as negociações se tornaram particularmente decisivas, as questões financeiras foram tratadas, algumas vezes, nas Reuniões do Primeiro-Ministro, que conta com a participação do primeiro-ministro federal e dos premiers das províncias. Com certa freqüência, as questões financeiras têm sido discutidas com antecedência na Conferência Anual de Primeiros-Ministros e em várias conferências regionais de premiers, a fim de que as províncias possam elaborar uma estratégia coordenada frente ao governo federal.

Duas outras características das relações financeiras intergovernamentais do Canadá devem ser consideradas. Uma delas é a prática de se permitir a certas províncias que elas escolham não participar de um esquema federal-provincial sem incorrer em penalidade financeira. Esse fato fornece flexibilidade adicional ao acomodar, particularmente, a insistência de Quebec quanto à sua singularidade e autonomia.

A outra diz respeito ao desenvolvimento de acordos coordenados de cobrança de impostos. Na maior parte das províncias, o governo federal arrecada os impostos de renda que são tributados, autonomamente, com alíquotas diferentes em cada província, sob a condição de que elas usem uma base comum estabelecida em nível federal (todas as províncias, com a exceção de Quebec, participam de acordos de arrecadação de imposto de renda de pessoa física, e todas as províncias, com a exceção de Alberta, Ontário e Quebec, participam de acordos de arrecadação de imposto de renda de pessoa jurídica). Diferentemente dos impostos de renda, a harmonização dos impostos sobre vendas é muito menos desenvolvida no Canadá, apesar de existirem três províncias atlânticas (Novo Brunswick, Nova Escócia e Newfoundland) que harmonizaram, totalmente, os seus impostos sobre vendas, como conseqüência de um incentivo fiscal concedido pelo governo federal. Um acordo com Quebec levou a uma harmonização naquela província, segundo a qual a província arrecada o GST (imposto sobre bens e serviços) para o governo federal.

c) Resumo e avaliação

Embora as diversas e extensas reuniões intergovernamentais tenham sido extensas e fundamentais para a evolução do sistema de tranferências financeiras e, também, para os acordos de coordenação tributária, é necessário enfatizar que elas não possuem status constitucional e nem há regras formais como exigências de votos para tomadas de decisão. A sua eficácia tem dependido, simplesmnte, do poder político dos participantes e da obtenção de algum consenso que é, então, implementado pela legislação federal. O governo federal tem cumprido um papel de liderança nas negociações e acordos intergovernamentais, principalmente, pela influência e persuasão que ele pode exercer na utilização do poder de gasto e pela supremacia de sua capacidade constitucional para exercer esse poder unilateralmente. No entanto, o poder e a influência do governo federal é fortemente restringido pelo fato de que ele não dispõe da jurisdição constitucional para implementar várias políticas. Por essa razão, o governo federal precisou tomar cuidado para não gerar divergência com as províncias, o que poderia fazer com que elas resistissem a cooperar com o governo federal em relação a políticas.

Essas negociações intergovernamentais exerceram uma papel fundamental de possibilitar que o ajuste das relações financeiras federais se adapte, no decorrer do tempo, a mudanças de circunstâncias. Seu caráter informal e a dependência do consenso intergovernamental significa, porém, que o sentimento de confiança entre os governos é um requisito primordial. Durante os primeiros anos da década de 90, a redução gradual do governo federal nos aumentos projetados de financiamento dos programas de custo compartilhado, então existentes, e a sua decisão unilateral (a fim de reduzir os seus próprios déficits) de fazê-lo, deixou às províncias a carga de ter de compensar essa redução nas transferências. Isso fez com que a previsão e o planejamento de receitas e despesas orçamentárias se tornassem cada vez mais difíceis para as províncias. Devido à iniciativa unilateral por parte do governo federal de reduzir o seu auxílio a programas em andamento no início e meados dos anos 90, as províncias se tornaram extremamente relutantes frente a qualquer novo acordo conjunto com o governo federal, restringindo, dessa forma, a capacidade dos processos intergovernamentais de reagir a mudanças nas circunstâncias econômicas e sociais. Esse fato ilustra como é importante o cultivo de um sentimento de confiança entre os governos para que se alcancem processos efetivos de ajuste.

Uma tentativa recente de reestabelecer essa confiança foi o Social Union Framework Agreement – SUFA (Acordo de Estrutura de União Social) de 1999. Devido à pressão provincial, esse acordo impõe novos limites ao uso federal de seu poder de gasto, prevê consultas antecipadas antes de qualquer renovação ou mudança significativa nas transferências sociais a fim de fazer com que o financiamento federal seja mais previsível para as províncias e inclui um mecanismo de resolução de conflitos. Tendo em vista que esse acordo foi celebrado há pouco tempo, não se sabe, ainda, qual será o impacto a longo prazo do SUFA sobre o consenso e a confiança intergovernamentais (Lazar 2000: 29-31).

3a PARTE: A EXPERIÊNCIA DA AUSTRÁLIA

a) O contexto

Quando a Austrália se transformou em uma federação, em 1901, ela conjugou instituiçoes federais e parlamentares, como no caso do Canadá.. Entretanto, a Austrália acrescentou algumas adaptações singulares, incluindo um senado eleito diretamente , no qual os estados têm igual representação, junto a um procedimento que pode, em certas circunstâncias em que eles não conseguem atingir um acordo, levar à dissolução dupla de ambas as casas do Parlamento federal. Como no Canadá, a combinação de instituições federais e parlamentares concentra as relações intergovernamentais nos processos executivos intergovernamentais.

As questões principais na esfera das finanças federais são: (1) a correção de um desequilíbrio fiscal relativamente pronunciado, oriundo da centralização consideravelmente maior de levantamento de recursos na Austrália em comparação ao Canadá; (2) a equalização fiscal entre os estados levam em conta não apenas as diferenças na capacidade de obtenção de receitas, mas também as diferenças nas necessidades de despesas, diferentemente do Canadá; e (3) a coordenação do endividamento público.

b) Os processos de ajuste das relações financeiras federais

Como no Canadá, a maior parte das instituições e processos de ajuste das relações financeiras federais australianas não são explicitamente fundamentadas na Constituição, mas evoluíram no decorrer de um século de funcionamento da federação (Galligan 2000: 226). Duas exceções foram a constitucionalização formal do Loan Council (Conselho de Empréstimo), por meio de emenda constitucional em 1927, que havia sido estabelecido, primeiramente, em 1923 com a finalidade de coordenar o endividamento público; e a inclusão, na Constituição, desde o início, da seção 96, que amplia, explicitamente, o poder de gasto federal, a fim de incluir possíveis pagamentos aos estados. Apesar de muitos dos processos de ajuste das relações financeiras entre os governos federal e estaduais terem se desenvolvido, na Austrália, por meio de negociações e acordos não-constitucionais, como no caso canadense, deve-se notar que existe uma tendência muito maior na Austrália de estabelecimento de instituições formais que dêem sustentação a esses processos intergovernamentais. Notável, por exemplo, foi o estabelecimento de órgãos formais como o Loan Council (em 1923 e constitucionalizado em 1927), a Commonwealth Grants Commission – Comissão de Subvenções da Commonwealth (1933) e o Council of Australian Governments – Conselho de Governos Australianos (1992).

O aspecto mais controverso das relações financeiras federais, na Austrália, é o grave desequilíbrio fiscal vertical (1995: 226). Ele resulta de dois fatores: em primeiro lugar, a interpretação jurídica da Constituição determinou que o governo federal tivesse um monopólio quantoà tributação sobre renda; em segundo lugar, uma interpretação jurídica exagerada quanto aos “impostos sobre consumo” impediu que os estados tributassem o consumo de base ampla ou impostos sobre vendas em geral. Assim, o governo federal leva a maior porção da receita e os estados dependem, demasiadamente, das transferências federais para dar conta de suas necessidades de despesa. Conseqüentemente, em comparação ao Canadá, as transferências intergovernamentais de meados dos anos 90 constituíam 40,7% da receita dos estados australianos, enquanto que, no Canadá, esse número era de 19,8% (Watts 1996a: 48). Na Austrália, praticamente a metade dessas transferências eram na forma de assistência incondicional de propósito geral (comparadas a mais de 90% de transferências incondicionais em bloco no Canadá). Essas transferências incondicionais asseguraram alguma autonomia aos estados na sua aplicação. No entanto, os estados não dispõem de autonomia no controle do tamanho dessas transferências. Como tentantiva de lidar com esse desequilíbrio vertical, quando da implementação do GST (imposto sobre bens e serviços, uma forma de IVA) pelo governo federal em 2000, foi acordado que os recursos obtidos deveriam ser transferidos aos estados. Por mais que a receita gerada tenha auxiliado os estados, a responsabilidade pela sua arrecadação permanece fora do alcance do estado, já que o GST é coletado pelo governo federal.

Por um longo período, essas questões foram ponderadas, regularmente, nas reuniões da Premiers Conference - Conferência de Premiers (as reuniões dos primeiros-ministros federal e estaduais) e ajustes foram, então, feitos tanto nas consideráveis subvenções de auxílio de finalidade geral quanto nas subvenções funcionais de finalidade específica. Quanto a isso, os processos de deliberação executiva intergovernamental que influenciaram os ajustes federais se assemelharam aos ocorridos no Canadá. Desde os anos 70, porém, a alocação dessas subvenções tem sido combinada à alocação de transferências de equalização e à Commonwealth Grants Commission (veja abaixo) foi conferida a tarefa de recomendar a alocação de todo um grupo de subvenções gerais de recursos aos estados, apesar de que a Premiers Conference ainda se encontra envolvida em negociações sobre o tamanho geral de tal grupo.

A evolução da equalização financeira na Austrália passou por uma série de estágios. A necessidade de auxílio por parte dos estados mais pobres foi prevista na disposição da constituição original que possibilitava assistência financeira federal a qualquer estado dentro de termos e condições a serem estabelecidas a critério do próprio governo federal (Galligan 1995: 221). De 1910 a 1933, iniciativas provisórias de assistência federal foram concedidas a alguns estados necessitados. Em 1933 essas assistências se tornaram mais sistemáticas quando a Commonwealth Grants Commission (CGC) foi criada a fim de fazer recomendações independentes ao governo federal sobre as solicitações especiais dos estados. Ao longo dos quarenta anos até 1973, a CGC desenvolveu uma metodologia de equalização fiscal elaborada e seus relatórios anuais desse período constituíram uma fonte rica de materiais sobre temas, conceitos e metodologia para lidar com as questões de equalização. A magnitude e independência da CGC foi reforçada pela consistência com a qual o governo federal aceitou e implementou as suas recomendações.

Em 1973, o papel da CGC mudou radicalmente: em vez de recomendar subvenções de equalização suplementares separadas aos “estados solicitantes”, passou a determinar as relatividades “per capita” de todos os estados a fim de estabelecer a alocação de todo um grupo de subvenções gerais de recursos aos estados (incluindo os referentes aos desequilíbiros verticais marcantes de receita e despesas). Nesse processo, desde 1981, a CGC utiliza uma metodologia detalhada de equalização de receita e gastos. A partir de 1989, os Territórios passaram a ser incluídos em suas recomendações. Quando o novo GST substituiu as subvenções gerais de recursos como fundo para a distribuição de transferências aos estados em 1999, a CGC ficou encarregada de recomendar a taxa de impostos, a base e as relatividades para a distribuição, sujeitas a supervisão por um conselho ministerial federal e estadual.

A definição atual do programa de equalização, conforme anunciada pela CGC em 1999, é que “os governos estaduais devem receber financiamento da Commonwealth de forma que, se cada um fizesse o mesmo esforço para levantar recursos por meio de suas próprias fontes e operasse com o mesmo nível de eficiência, todos teriam a mesma capacidade de fornecer serviços com o mesmo padrão.”

A metodologia da CGC é composta por cinco estágios: (1) a preparação de um orçamento estadual padrão de receitas e despesas (com um saldo sugerido); (2) a medição de deficiências em cada estado; (3) a aplicação das deficiências como proporção da média nacional às receitas e despesas padrão em cada estado; (4) a agregação de relatividades para cada estado; e (5) a aplicação das relatividades de cada estado ao conjunto disponível de recursos. Em 1998-1999, essas metodologia produziu relatividades de 0,90032; 0,86273 e 0,94035 em Nova Gales do Sul, Vitória e Austrália Ocidental e de 1,00775; 1,20764; 1,61001; 1,10358 e 4,84095 em Queensland, Austrália Meridional, Tasmânia, o Território da Capital Australiana e o Território do Norte. O resultado foi uma variação entre as transferências per capita de $1.010 em Vitória a $1.886 na Tasmânia e $5.670 no Território do Norte.

Deve-se notar que, em contraste ao Canadá, o processo australiano envolve uma abordagem de impostos e despesas representativa. Os fatores de deficiência representam desvios positivos e negativos da média das práticas estaduais, refletindo tanto as necessidades quanto os custos diferentes, que são mensurávies, significativos e não relacionados a preferências quanto a políticas (isto é, fora do controle do governo estadual). Nessa avaliação, se exige da CGC significativa análise contínua. Não surpreende que uma questão constante tenha sido a do escopo de receitas e despesas a serem incluídas nos cálculos.

A CGC é composta de quatro membros, indicados pelo governo federal. No período desde 1933, porém, a CGC se tornou conhecida por sua independência. Ela tem um quadro oficial de aproximadamente cinqüenta funcionários, baseados em Canberra. Ela conduz audiências; efetua visitas de campo; participa de reuniões freqüentes com as Treasury Departments (Tesourarias) dos estados e territórios; e, depois, utiliza os seus próprios critérios para fazer suas recomendações. O contexto político para o seu trabalho é fornecido pela Financial Premiers Conference (Conferência Financeira dos Premiers) , que negocia sobre os termos de referência para as análises da CGC, defende um padrão geral para as transferências integovernamentais e debate os efeitos e o futuro da equalização. A última palavra quanto à quantia do conjunto de subvenções de recursos gerais e outros fundos aos quais a equalização é aplicada cabe ao Federal Treasurer (Tesoureiro Federal). O acordo de 1999 , que deu base ao conjunto a ser distribuído, incluindo a equalização quanto ao novo imposto sobre bens e serviços, conferiu aos estados uma maior certeza quanto à receita. Na prática, os governos federais na Austrália fizeram poucas mudanças às relatividades recomendadas pela CGC. Até agora, os debates lidaram com a questão de que fundos devem fazer parte do conjunto a ser disponibilizado e o que deve ser incluído na fórmula, em primeiro lugar.

O endividamento público representa outro setor no qual a Austrália desenvolveu uma instituição financeira intergovernamental formal. Fundado em 1923 e recebendo autoridade formal na Constituição em 1927, por meio de uma Emenda Constitucional, o Loan Council era constituído de representantes federais e estaduais, possuía regras formais de votação e a habilidade de tomar decisões que comprometiam ambos os níveis de governo. As regras de votação determinavam que cada estado dispunha de um voto e o governo federal, dois e mais o voto decisivo (ou seja, para utilizar quando o governo federal tivesse de apoiar pelo menos dois dos seis estados). Nos anos 90, porém, a demanda gerada pelo endividamento público diminuiu, devido às privatizações e à terceirização, reduzindo o papel do Conselho de Empréstimo, que mudou agora para um monitoramento coletivo limitado (Galligan 1995: 232-234).

Outro exemplo, ainda, da institucionalização das relações intergovernamentais na Austrália foi o estabelecimento, em 1992, do Council of Australian Governments – Conselho dos Governos Australiano (COAG). Sua função é a de supervisionar os processo de colaboração intergovernamental e, em particular, fazer com a que a reunião econômica australiana seja mais eficaz. Inclui não só os líderes dos governos federal e estaduais, mas também um representante dos governos locais, o Conselho sistematizou a organização, os termos de referência e as regras de tomada de decisão dos vários conselhos ministeriais intergovernamentais setoriais sob o seu monitoramento.

c) Resumo e avaliação

Vários autores apontam o elaborado sistema australiano para a equalização e os ajustes financeiros intergovernamentais como uma característica particular da federação australiana (Gramlich 1984; Matthews 1994; Galligan 1995: 254). Como no Canadá, os processos de ajuste das relações financeiras entre o governo federal e os estados da Austrália, ocorreram, predominantemente, no contexto das negociações e acordos entre os executivos dos diferentes níveis de governo. Entretanto, o que distingue a abordagem australiana da canadense é um desenvolvimento bem maior de instituições formais para lidar com tais processos. Embora não tenham sido incorporados à Constituição, órgãos como a Financial Premiers Conference, a Commonwealth Grants Commission, o Loan Council e o Council of Australian Governments ilustram essa abordagem.

Outro aspecto contrastante com o Canadá diz respeito ao esforço dirigido ao processo de equalização a fim de corrigir os desequilíbrios horizontais, levando em conta não só as variações na capacidade de levantar recursos, como também as diferenças quanto às necessidades de despesa (isto é, a capacidade de fornecer serviços).

O exemplo australiano é particularmente importante, pelo seu pioneirismo, entre as federações, no desenvolvimento de procedimentos e instituições formais de ajuste dos acordos financeiros entre o governo federal e os estados, e por ter sido o modelo que mais influenciou várias federações subseqüentes na Ásia e na África.

4a PARTE: CONCLUSÃO

Os exemplos do Canadá e da Austrália para os processos de ajuste das relações financeiras federais oferecem uma série de lições em comum:

(1) A dependência intergovernamental é inevitável nas federações e a colaboração entre os governos é fundamental. Tendo em vista que as alocações constitucionais das fontes de recursos e responsabilidades de gasto nunca serão equilibradas de forma exata, os ajustes intergovernamentais na forma de transferências se mostraram necessários não só no Canadá e na Austrália, como também em todas as federações.

(2) As federações requerem o estabelecimento, seja constitucionalmente ou , mais freqüentemente, extra-constitucionalmente, de processos e instituições formais e informais para o ajuste dos acordos financeiros federais. Esses são necessários para a correção dos inevitáveis desequilíbrios verticais e horizontais de recursos e gastos e para o ajuste, ao longo do tempo, a mudanças nos valores das fontes de recursos e custos das responsabilidades de gasto.

(3) Para que se preserve o princípio de que, em uma federação, nenhuma esfera do governo deve estar subordinada a outra, os processos de ajuste das relações financeiras não devem ficar sujeitos somente a determinações unilaterais de uma ou outra esfera de governo na federação. Nos casos em que a Constituição atribuiu a autoridade final ao governo federal quanto à determinação do nível e escopo das transferências, geralmente, a realidade política federal, tanto do Canadá como da Austrália, forçou o governo federal a participar de vários processos de negociações e acordos com os governos provinciais ou estaduais antes de realizar ajustes nos acordos financeiros.

(4) Nas federações parlamentaristas, das quais ambos o Canadá e a Austrália são exemplos, as negociações e os acordos financeiros intergovernamentais tomam, geralmente, a forma de “federalismo executivo”, isto é, negociações entre os poderes executivos e seus representantes – primeiros-ministros, ministros financeiros e servidores públicos – de cada um dos governos da federação. Isso acontece, porque, em sistemas parlamentaristas, embora os executivos formalmente respondam a suas legislaturas, os executivos, por meio da disciplina de partido, passaram a dominar essa relação.

Embora os modelos canadense e australiano de ajuste das relações financeiras federais tenham essas características fundamentais em comum, há, também, algumas diferenças significativas entre eles:

(1) A Austrália utilizou bem mais o estabelecimento de processos e instituições formais para facilitar os processos de ajuste e coordenação de acordos financeiros, como ilustrado pelo Loan Council, a Financial Premiers Conference, a Commonwealth Grants Commission e o Council of Australian Governments. Em contraste, o Canadá se baseou, quase que totalmente, em processos informais. O bastante recente Social Union Framework Agreement de 1999 representa um passo em direção a acordos mais formais, mas é ainda muito cedo para que se possa julgar a sua eficácia. A diferença nessas duas abordagens parece resultar do maior grau de desequilíbrio vertical de recursos e gastos na Austrália, impondo a necessidade de ajustes consideráveis e da maior ênfase no Canadá em evitar acordos que possam minar a autonomia de qualquer das esferas do governo. Um exemplo conhecido e irônico ilustra esse contraste. As propostas de 1991 do Governo do Canadá para a reforma constitucional incluía uma proposta de se criar um Conselho da Federação intergovernamental, como um novo instrumento para melhorar a colaboração intergovernamental, visando a fortalecer a união econômica. Durante deliberações intergovernamentais subseqüentes, tal proposta foi abandonada, devido ao medo de algumas províncias de que ela pudesse contribuir com o domínio do governo federal no conselho e porque algumas províncias acharam que uma melhor alternativa seria fortalecer a influência das províncias na criação de políticas por meio do estabelecimento de um Senado no modelo EEE (elected, equal provincial representation, and effective – Eleito, representação provincial Equivalente e Efetiva). Ironicamente, apenas um ano mais tarde, na Austrália (que, desde 1901, só tinha um Senado exatamente como o citado acima), o governo federal e o estados concordaram em adaptar, conforme suas práticas, a idéia canadense de criação de um Conselho da Federação, estabelecendo, formalmente , o seu próprio conselho intergovernamental, o Council of Australian Governments, com o objetivo principal de fortalecer a união econômica.

(2) As diferenças entre os processos canadense e australiano para o ajuste de acordos financeiros federais apontam para a importância das circunstâncias econômicas, sociais e políticas que os influenciam. Por exemplo, dentre as federações, o Canadá se destaca pela ênfase que confere à autonomia provincial. O impacto da insistência de Quebec pela autonomia provincial e o alto grau de diferenças sociais e econômicas entre as outras províncias são fatores importantes. Além disso, a ênfase que a constituição canadense coloca na exclusividade dos poderes legistlativos de cada esfera de governo e o fato de que o Canadá possui, constitucionalmente, o menor número de áreas de jurisdição concorrentes que qualquer outra federação contemporânea reforçou essa tendência. Um outro fator é que as disposições para a representação dos governos ou interesses provinciais nas instituições canadenses de criação de política federal são em menor quantidade que em qualquer outra federação atual, devido ao fato de que o Senado é nomeado de forma central. Assim, os acordos entre o governo federal e estadual quanto a assuntos financeiros precisou focalizar, no Canadá mais que em qualquer outra federação, nos processos extra-parlamentares informais de negociação inter-executivo intergovernamental. Na Austrália, onde as diferenças políticas e sociais entre os estados, embora significativas, não são tão drásticas; onde a Constituição reconhece áreas maiores de jurisdição concorrente; e onde há um Senado que é eleito de forma direta, tem havido menos resistência quanto ao estabelecimento de processos e instituições formais para a colaboração intergovernamental financeira e econômica.

(3) Deve-se notar, também, que as diferenças nos padrões de relações financeiras intergovernamentais refletem não só o caráter específico de cada economia, sua diversidade social e instituições políticas, mas também os valores e a cultura política de cada sociedade, em particular. Assim, por exemplo, a maior ênfase em eqüidade levou a um maior impulso em direção à total equalização de capacidade de obtenção de receitas e necessidade de despesas, afetando o caráter de suas relações financeiras intergovernamentais. Em contraste, as relações financeiras federais canadenses refletem o caráter da federação canadense, na qual as questões de eqüidade são contrabalançadas por uma ênfase forte na autonomia de cada esfera de governo.

Os dois exemplos, Canadá e Austrália, que foram examinados neste artigo, apontam para a importância dos processos de ajuste financeiro em cada federação e da eficácia dos processos de colaboração que sustentam um equilíbrio adequado entre os governos de uma federação. Ao mesmo tempo, as diferenças entre as duas experiências também apontam a necessidade de que esses processos sejam adaptados às circunstâncias particulares de cada federação.

Referências

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