RELAÇÕES INTERGOVERNAMENTAIS

NA ARGENTINA: A FALTA DE INSTITUCIONALIZAÇÃO

Alberto Fohrig**

O federalismo argentino testemunhou recentemente o surgimento de uma estrutura mais complexa para a criação de políticas públicas em nível nacional. Ao mesmo tempo, nota-se a falta de procedimentos institucionais que medeiem as interações entre os stakeholders. A conseqüência deste fenômeno é uma política pública que carece de imaginação, tem vida curta e não tem consistência. Este artigo tenta examinar os determinantes deste comportamento, bem como várias medidas que tendem a modificá-lo.

DETERMINANTES POLÍTICOS

• Relações entre os elementos constituintes da federação

Com a consolidação da democracia, os governadores de província têm adotado um papel cada vez mais ativo como líderes. Um processo de pluralização territorial gradual do poder político está em curso. Alguns dos fatores que resultaram nesta preponderância institucional estão listados abaixo.

Nos últimos anos, tem havido mais votos regionais entre as linhas de partido. Os votos no Congresso relativos à extensão do fundo do tabaco, que uniu deputados de diferentes partidos que representavam as províncias produtoras de tabaco, e o subsídio para os combustíveis da Patagônia, que reuniu os legisladores dessas províncias, sem levar em consideração seus partidos de origem são dois exemplos.

Sob uma tradicional separação de poderes, o poder executivo e o legislativo negociam a aprovação da legislação que o governo federal necessita para suas operações. Entretanto, nos últimos anos este padrão tem mudado. Os governadores de província primeiro negociam com o poder executivo quanto a assuntos que afetem suas províncias e então dão instruções a seus respectivos deputados e senadores sobre como votar nestas matérias.

As listas de candidatos para o legislativo nacional são preparadas ao nível da província. Como o governador é normalmente o líder do partido no nível local, ele desempenha um papel extremamente importante na determinação de qual deputado ganhará outro mandato ou que facções locais predominarão quando as listas de candidatos forem feitas. A taxa de reeleição de governadores é alta, enquanto a de deputados é extraordinariamente baixa: dos cerca de 130 deputados que se elegeram para a Câmara de Deputados em 1997, somente 17 foram mantidos da administração anterior.

Este padrão de relações entre o poder executivo, o legislativo e as províncias varia dependendo de que partido está no poder executivo em nível nacional e dependendo da força relativa do partido que forma o governo, em relação aos vários governos de província.

Desde que a democracia foi restaurada em 1983, durante os dois mandatos em que a Unión Cívil Radical (UCR) esteve no poder executivo federal, a maioria das províncias ficou com o principal partido de oposição. A UCR sempre teve minoria no Senado. Ela alternou entre ter a maioria absoluta na Câmara de Deputados e ser a maior minoria na Câmara. De maneira geral, este desequilíbrio de apoio partidário entre as duas casas implica que o poder executivo terá mais dificuldades em implementar as diretrizes políticas que desenvolveu.

O Partido Justicialista também esteve na presidência por dois mandatos. Durante os dois teve maioria absoluta no Senado, maioria relativa ou absoluta na Câmara de Deputados e a maioria dos governadores. Conseqüentemente, a autoridade estava concentrada no poder executivo. O chefe do poder executivo, o presidente da nação, era então o líder do partido que formava o governo.

Esta divisão específica de autoridade institucional pode ser vista como uma combinação de dois fatores: a distribuição da população na Argentina e o sistema eleitoral vigente. Sistemas federais tendem a outorgar um número igual de representantes a distritos eleitorais geograficamente definidos, sem levar em consideração o número de pessoas que vivem no distrito e sua importância política e econômica. A representação em segundas câmaras está freqüentemente baseada na igualdade das unidades constituintes. A composição da casa mais baixa, embora baseada em princípio na representação pela população, pode ser modificada pelo sistema eleitoral ou por dispositivos constitucionais específicos projetados para satisfazer questões de províncias individuais. Entretanto, para evitar distorções na representação, o sistema federal deve ter algum tipo de homogeneidade em termos de distribuição da população. A população de Argentina é distribuída de uma maneira extremamente desigual. Um terço da população vive a um raio de quarenta quilômetros de Buenos Aires. Das vinte e três províncias e um distrito federal, cinco províncias respondem por 75% da população.

Depois da reforma constitucional de 1994, a lei eleitoral Argentina estipulou que o Senado consistiria de 72 membros, três por província; dois representando a maioria no nível da província, e um representando a minoria. Como resultado disto, as províncias com populações pequenas detêm um poder enorme na Câmara Superior. Seis províncias cujos números totais de habitantes compõem 3,6% da população detêm 25 cadeiras no Senado. A Câmara dos Deputados tem um total de 257 membros eleito proporcionalmente seguindo o método de d’Hont, com um mínimo de 3%. No entanto, todas as províncias têm no mínimo cinco deputados, sem levar em consideração o tamanho de sua população. Assim, a província de Buenos Aires, que responde por 38% da população, detém somente 28 por cento das cadeiras na Câmara dos deputados. As seis províncias com as menores populações (3.6% do total) detêm 11% das cadeiras na Câmara dos Deputados. Estes números mostram um nítido desequilíbrio na representação em favor das províncias pequenas.

Finalmente, o Presidente da Nação é eleito por meio de um sistema de distrito único. Conseqüentemente, se um candidato obtiver os centros urbanos de cinco províncias durante a campanha, é quase certo de ganhar a presidência.

Como resultado desta combinação de sistemas eleitorais, o poder executivo é eleito pelo centro e o poder judiciário é eleito pela periferia. No centro, onde os moradores da cidade predominam, os eleitores são inconstantes, enquanto na periferia o eleitorado é bem mais leal, especialmente durante as eleições locais. Esta distribuição geográfica da população, juntamente com os sistemas eleitorais, é ainda outro fator que fortalece o poder crescente dos governadores de província.

Até aqui este artigo descreveu a distribuição do poder institucional que a Argentina experimentou nos últimos dezoito anos de governo democrático. Mas para entender completamente a dinâmica das relações intergovernamentais é preciso levar em conta um terceiro fator: os diferentes comportamentos dos vários partidos, que se originam de suas estruturas internas e seus estilos históricos de liderança.

Os partidos relevantes no sistema político da Argentina tendem a se comportar diferentemente, dependendo do poder relativo que detêm nos poderes executivo e legislativo, tanto federalmente quanto em nível provincial.

Quando o Partido Justicialista forma o governo federal, ele geralmente apóia seu Presidente. Quando em oposição, ele tende a se dividir, até que uma nova liderança interna surja. Os padrões de oposição do Partido Justicialista variaram significativamente de 1983 até hoje. Durante a presidência de Fernando de la Rúa, o Partido Justicialista não bloqueou o trabalho do Congresso a uma grande extensão - algo que tinha sido visto durante a administração de Alfonsin - embora tenha continuado sua tarefa de protesto social através de seu envolvimento com os sindicatos.

A UCR durante as últimas presidências tendeu a apoiar seu Presidente no poder executivo. Esta prática foi questionada durante o último mandato, devido a desentendimentos entre o poder executivo e o partido no poder. Alguns destes desentendimentos deveram-se ao Presidente e seu partido terem concepções diferentes sobre como uma coalizão deva funcionar. Quando a UCR está na oposição, o Presidente do partido fica mais importante, e em menor grau, também ficam os governadores deste partido. Eles tendem a legitimar seu real poder ocupando cargos na estrutura nacional do partido.

Por outro lado, os partidos de província são distintamente pragmáticos quando chega a hora de se forjar uma coalizão; normalmente eles apóiam

o partido que forma o governo, que é o que pode prover maiores benefícios para as províncias que eles governam.

Concluindo, a distribuição da população e a distribuição do poder institucional, juntamente com os padrões políticos dos vários partidos que formam o governo ou a oposição, são fundamentais para se entender o sistema político argentino no geral, e a implementação efetiva de política pública em particular.

Estes fatores mostram como as interações entre o governo federal e as províncias podem dar origem a um governo dividido. Entretanto, esta situação por si só não conduziu a uma paralisia governamental. Apesar do que é dito na literatura crítica do sistema presidencial, até hoje não vimos

o governo paralisado como resultado desta fragmentação de poder dentro do sistema presidencial argentino.

Em vez disso, o que temos visto é um regime político estável em meio a um alto nível de instabilidade institucional. Em média, um ministro federal permanece em sua pasta por apenas oito meses. Resumindo, há disputas dentro do sistema, mas nenhuma disputa sobre o próprio sistema.

Dado este cenário de pluralização gradual, a introdução de políticas sem

o consenso de figuras como os governadores de província, que estão se tornando cada vez mais importantes dentro do sistema político, é começar com o pé esquerdo. Muitas figuras políticas, especialmente as de dentro do governo federal, não perceberam esta nova realidade. Algumas estão tentando implementar uma ampla gama de políticas baseadas na velha estrutura centralizada, não percebendo que as figuras e os processos mudaram. Como resultado, muitas políticas públicas aplicadas de uma maneira descentralizada requerem um mecanismo de tomada de decisão que as faça qualitativamente diferente. Como uma estrutura multidimensional para análise não está sendo aplicada, muitas políticas falham. Como resultado disto, os canais errados estão sendo escolhidos para implementar políticas e o consenso político necessário para sustentar as políticas com o passar do tempo não existe.

• Relações intergovernamentais dentro do poder executivo federal

Muitos dos sucessos e fracassos de um governo podem ser explicados pela estrutura do poder executivo. Numa análise final, deve-se determinar como a modificação da estrutura e da organização do poder executivo propicia incentivos a membros de um governo para cooperar ou se ocupar de confrontação.

De todas as prerrogativas que o Presidente desfruta, ele provavelmente desfruta mais da discrição quando seleciona os ministros de seu gabinete. Dentro da estrutura do Gabinete, há múltiplas tensões que deveriam ser examinadas no começo de uma administração. No caso da Argentina moderna, as tensões primárias são as seguintes:

• Adistribuição assimétrica de poder entre a presidência e as outras

instituições, e a harmonização desta distribuição assimétrica de

poder em um governo de coalizão.

  • Autonomia versus controle na composição do Gabinete, particularmente em um governo de coalizão.

  • Funções sobrepostas e fronteiras obscuras entre áreas de jurisdição no poder executivo.

  • O surgimento de novas formas de governança para introdução de políticas (ex.: conselhos federais/provinciais, grupos multistakeholder, ou grupos inter-agências que precisam de uma metodologia para serem operantes).

  • Asolução de conflitos latentes entre os ministros da economia e os ministros que redistribuem riqueza, particularmente a questão do controle independente do orçamento.

  • Coordenação interministerial através de figuras que são neutras, indiferentes aos resultados dos jogos de poder.

  • Regulamentação em acordo com critérios representativos estabelecidos antes das negociações políticas de curto prazo das relações interjurisdicionais, particularmente as relações relativas a impostos.

A estrutura do poder executivo é particularmente problemática no caso de um governo de coalizão dentro de um sistema presidencial. Devido ao fato de que nos sistemas presidenciais em geral, e no sistema argentino em particular, os presidentes são figuras extremamente poderosas, a concepção do líder do que uma coalizão deve ser é de importância vital, além dos padrões de organização dentro do poder executivo. Resumindo, muitos dos resultados obtidos por uma coalizão dependem do que as figuras principais vêem como sendo uma coalizão.

Há duas visões conflitantes do que constitui uma coalizão em um sistema presidencial. Uma é a de que o Presidente é o verdadeiro depositário de legitimidade popular, e, portanto, a coalizão é vista como um instrumento usado para sua própria estratégia. A outra visão, que é muito distinta, é a de que o Presidente é eleito como representante de uma coalizão de partidos, e ele tem que proteger o equilíbrio desta coalizão como a fundamentação da legitimidade dele.

No caso da Argentina de hoje, o primeiro ponto a ser tido em mente é que

o poder executivo é composto de vários partidos que compõem um governo de coalizão. Por conseguinte, o Presidente pode ser de um partido, um ministro pode ser de outro partido e os secretários e vicesecretários podem ser de um terceiro ou de uma facção interna dentro do mesmo partido que está competindo com outras facções. Por conseguinte, muitos dos conflitos dentro do poder executivo podem ser vistos como conflitos entre os “homens do presidente” e os “homens do ministro”.

Quando o Presidente não dá a seus ministros a oportunidade de escolher o próprio pessoal, ele ganha à curto prazo, uma vez que sua autoridade é fortalecida. Mas no médio prazo ele perde, por não ter equipes homogêneas para implementação de políticas. Em muitos casos estas situações podem levar à paralisia em uma determinada área da administração. Se a mesma situação acontecer em todos os ministérios, os vários stakeholders não estarão “dançando conforme a mesma música”, e isto conduz a confederações de poderes e divisões, com alguns setores ampliando suas esferas de influência e estabelecendo seus próprios feudos.

Funções sobrepostas em áreas diferentes do poder executivo e fronteiras obscuras entre áreas de responsabilidade também podem causar conflito e dificultar a solução de problemas de políticas públicas. Em lugar de permitir esforços interdisciplinares, este tipo de situação tem freqüentemente paralisado o governo.

Um exemplo deste problema são as transações econômicas com as províncias. Por causa de dispositivos constitucionais e legais, funcionários federais e de província que estão no mesmo nível hierárquico freqüentemente têm que trabalhar juntos. Como resultado disto, as relações intergovernamentais estão sujeitas a padrões de cooperação ou conflito, dependendo das pessoas que ocupam estes cargos. Assim, na prática, vários stakeholders vêm e vão e negociações paralelas são feitas com diferentes figuras, dependendo de quem seja o Ministro do Interior, o Ministro das Finanças ou o Chefe de Gabinete. Em muitos casos, o próprio Presidente é absorvido por esta dinâmica, se tornando mais uma figura no jogo.

Esta dinâmica também cria distorções para as províncias, na medida em que os esforços sem coordenação levam a resultados que são bastante injustos para alguns. As províncias com governadores que têm uma relação pessoal melhor com o Presidente ou que podem pressionar mais o governo federal adquirem mais benefícios, embora estes benefícios possam não se ajustar a uma estratégia maior de desenvolvimento para todas as províncias.

Apesar desta situação, depois da descentralização profunda que o país atravessou nos anos 90, que mais tarde será descrita brevemente neste artigo, novas oportunidades para a solução de problemas interjurisdicionais apareceram, como também novas oportunidades para a organização de esforços inter-agências e iniciativas multi-stakeholder. Estas oportunidades demonstram as complexidades da nova estrutura organizacional para política pública, bem como as possibilidades para o surgimento de novos mecanismos de institucionalização. Assim, há muitos exemplos de conselhos federais-provinciais, que normalmente são responsabilidade do ministro federal da área em questão e suas contrapartes provinciais. Os mais importantes são os conselhos federais/provinciais de Educação, Segurança Interna, Infra-estrutura, Investimento e Administração Pública.

Porém, estas novas oportunidades servem mais como foros para a criação de consenso do que como órgãos que tomam decisões obrigatórias os partidos. Em muitos casos, valiosos consensos desenvolvidos depois de difíceis deliberações são perdidos com o tempo porque não são implementados. Em geral, estas organizações careceram de capacidade de tomada de decisão e de continuidade com o passar do tempo, e responderam mais às necessidades políticas momentâneas do que a estratégias de médio ou longo prazo. Finalmente, elas não conseguem substituir as negociações baseadas nas relações pessoais e na capacidade de fazer pressão com critérios que podem ser inevitavelmente políticos em natureza, mas pelo menos são estabelecidos antes das negociações particulares em andamento e baseados em indicadores próprios.

As relações entre os ministérios são marcadas pela tensão entre ministérios econômicos, tipicamente o ministério da Fazenda, e ministérios que redistribuem riqueza, como Desenvolvimento Social ou Saúde. Se estes últimos são ou não subordinados ao ministério da Fazenda ou no mesmo nível do ministério da Fazenda depende da retórica e do simbolismo que são mediados politicamente pelo Presidente por sua distribuição seletiva de poder. Mas também deve-se analisar as relações financeiras entre os ministérios, na medida em que isto indica o peso relativo de cada ministério com respeito à resolução de problemas específicos. Especificamente, deve-se determinar se cada ministério tem controle independente sobre seu orçamento, ou se o ministério da Fazenda, pelo processo de orçamento, tem um veto de facto sobre as políticas a serem implementadas pelos outros ministérios.

Muitos dos problemas previamente mencionados podem ser solucionados por meio de uma coordenação efetiva entre os ministérios. A constituição argentina agora provê um Chefe de Gabinete. Seus deveres incluem a administração geral do país, e assim a tarefa de assegurar harmonia entre os vários componentes do poder executivo federal. Sem dúvida, esta coordenação é um elemento fundamental de governança. Entretanto, se o Chefe de Gabinete for levar a cabo esta tarefa, ele deve estar acima de quaisquer lutas de poder dentro do poder executivo. Se o Chefe de Gabinete perdesse sua neutralidade, ele careceria de credibilidade e seria menos efetivo na execução de seu papel.

A posição de Chefe de Gabinete, criada como parte da reforma constitucional de 1994, foi idealizada como um mecanismo para fazer o sistema presidencial mais flexível. Os vários golpes de estado que aconteceram no século XX mostraram a necessidade de um mecanismo para provocar mudanças fundamentais dentro do governo em resposta a uma grande crise, sem derrubar o chefe de estado, e assim o sistema democrático em sua totalidade. Com esta maior flexibilidade no poder executivo, o poder legislativo agora tem a capacidade, de acordo com a Constituição, de remover o Chefe de Gabinete como uma maneira de censurar o governo.

Na prática, porém, o Chefe de Gabinete tem estado muito subordinado ao Presidente. Quando líderes fortes como Carlos Menem estiveram na presidência, os Chefes de Gabinete eram low profile, enquanto que quando líderes mais burocráticos, como Fernando de la Rúa, estiveram na Presidência, os Chefes de Gabinete tiveram um perfil político muito mais alto. Até hoje, não aconteceu o pior cenário. A Argentina não teve um Presidente de um partido e um Chefe de Gabinete de um partido de oposição. O sistema institucional se antecipou a uma tal possibilidade no caso de uma grande crise política.

Finalmente, um fator necessário para a institucionalização das relações intergovernamentais é a necessidade de padrões mais eficazes nas relações entre o governo federal e as províncias e menos autoridade discricionária na distribuição de benefícios. Há dois exemplos particularmente bons desta tendência. O primeiro é o Aportes del Tesoro Nacional, subsídio discricionário que o poder executivo federal concede a províncias e municípios. Estes subsídios atualmente excedem 150 milhões de dólares por ano, mas em meados dos anos 90 totalizavam mais de 500 milhões de dólares por ano. O poder executivo podia alocar estes subsídios à sua discrição, completamente como desejasse. O segundo exemplo, até mesmo mais significativo que o primeiro, é a Lei de Arranjos Fiscais Federais/Provinciais, que governa as relações entre o governo federal e as províncias com respeito à cobrança de impostos e a distribuição de receitas de imposto. Sob a reforma constitucional de 1994, uma nova legislação seria aprovada antes de 1996 que fixaria os critérios para tais arranjos. Até hoje, esta legislação não foi aprovada e, por conseguinte, questões tributárias com as províncias são decididas por meio de negociações políticas entre as figuras federais mencionadas anteriormente e os governadores. Há um problema, pois há uma falta de uniformização dos critérios estabelecidos com antecedência e baseados em indicadores apropriados.

DETERMINANTES FISCAIS E ECONÔMICOS

Embora o objetivo principal deste artigo seja explicar a dinâmica intergovernamental como o resultado das relações entre figuras políticas nos níveis provincial e federal, há outro conjunto de variáveis que são pertinentes quando se tenta explicar tal comportamento de uma maneira abrangente.

Além de analisar as relações políticas entre o governo federal e as províncias, deve-se considerar a situação financeira e produção econômica das províncias. Em particular, é impossível entender a dinâmica de poder entre o governo federal e as províncias sem considerar

o crescimento na dívida provincial e, por conseguinte, a inabilidade das províncias de implementarem políticas ao nível delas.

Historicamente, as províncias argentinas administraram suas finanças de maneira errática. Fatores como administração ineficiente e o uso de benefícios do governo para comprar votos tiveram um papel importante em um número significativo de províncias que se endividaram.

Durante os anos 90, três fatores levaram a dívida provincial a subir notavelmente, tornando assim impossível que as províncias implementassem políticas. Estes fatores foram a descentralização, o colapso das economias regionais e a abundância de capital internacional para financiar dívidas. Estes fatores explicam o comportamento da

100

maioria esmagadora das províncias argentinas, embora tenha havido alguns casos de províncias que evitaram se endividar, como as províncias de La Pampa e de San Luis.

A transferência de serviços que começou no início dos anos 90 foi iniciada pelo governo federal sem primeiro permitir que as províncias se ajustassem ao novo contexto. Como resultado dos imperativos fiscais e da tendência do governo federal de deixar de prover uma gama muito ampla de funções e serviços públicos, foram introduzidas políticas de descentralização sem se assegurar a provisão de serviços de qualidade e sem levar em conta a saúde financeira das províncias. Serviços como o de educação e de assistência médica foram transferidos para as províncias sem o financiamento correspondente, e sem o treinamento necessário dos recursos humanos que teria tornado possível prover tais serviços. Além disso, estes serviços foram transferidos tão depressa que as províncias não tiveram tempo para se ajustar gradualmente.

Embora a descentralização tenha prejudicado as finanças da maioria das províncias e reduzido a qualidade dos serviços, algumas províncias puderam se ajustar melhor às mudanças. Em particular, as províncias que já tinham começado a transferir responsabilidades provinciais aos municípios. Este grupo de províncias pôde lidar melhor com o novo contexto. Em primeiro lugar, elas tiveram a experiência de negociar dentro da própria província, e assim os funcionários que trataram com as autoridades federais já sabiam quais eram as variáveis mais importantes para negociar com o governo federal. Além disso, elas tiveram os recursos humanos necessários em suas burocracias para lidar com o novo contexto, ou seja, os administradores de alto e médio escalão que haviam sido treinados para administrar tais políticas. Estes exemplos mostram que uma estratégia de descentralização gradual dos serviços funciona melhor do que uma transferência direta das funções de uma jurisdição para outra.

A descentralização também causou um aumento em gastos recorrentes, bem como na dívida provincial, que teve um efeito marcante no fluxo monetário e na capacidade das províncias de introduzir políticas. Os gastos recorrentes no nível provincial que mais aumentaram nos anos 90 foram os gastos pessoais e o pagamento de juros sobre a dívida pública.

O segundo fator mais importante na explicação da posição fiscal das províncias foi o colapso das economias regionais. Isto foi causado pela privatização das companhias estatais e pela abertura da economia às importações, que tiveram um efeito particularmente prejudicial às indústrias locais que não estavam acostumadas à competição estrangeira.

Quando a YPF, a companhia de petróleo estatal, foi privatizada, dezenas de milhares de trabalhadores foram mandados embora, por meio de pacotes de aposentadoria antecipada e de demissão voluntária que acarretam grandes pagamentos de indenizações. A mesma coisa aconteceu com as companhias de estrada de ferro. Além de proporcionar

o transporte, estas companhias cumpriam uma função social de comunicação e integração em larga escala, dado o tamanho de Argentina. A falta de políticas para ajudar os trabalhadores afastados a voltarem à força de trabalho levou a uma forte demanda por emprego público no nível da província. Além dos problemas econômicos, havia conflito social, pois muitas destas pessoas deixadas sem emprego na indústria petrolífera ou nas ferrovias se lembravam de suas regalias. Elas tinham a lembrança de seus padrões de emprego e esperavam uma renda satisfatória e um certo padrão de vida. O contraste entre a situação atual deles e a memória das regalias que perderam deu origem a um conflito agudo em grupos que haviam sido empregados anteriormente nas companhias agora privatizadas.

A abertura da economia para importações através da redução de tarifas sem haver primeiro uma reestruturação das indústrias locais, particularmente as indústrias regionais, foi um duro golpe para as economias locais, e tornou particularmente difícil a coleta de receita de impostos provinciais.

102

A privatização das companhias estatais criou uma forte pressão para impulsionar o emprego no setor público provincial, causando assim um grande e permanente aumento nas despesas. Além disso, como as economias regionais se deterioraram, ficou mais difícil de se coletar impostos ao nível local, devido à falta de atividade econômica. Por estes motivos, as províncias não puderam gerar a receita necessária, e assim cresceu a pressão ao governo federal para obter financiamento ou recorrer ao endividamento.

A abundância de capital internacional durante a década passada permitiu que as províncias se endividassem ainda mais. A dívida delas é atualmente de 23 bilhões de dólares, o que é igual a 8,2% do PIB. Em 1999, suas dívidas combinadas eram de 4,6 bilhões de dólares (1,6% do PIB).

Concluindo, devem ser reconhecidos tanto o poder relativo das figuras políticas quanto a natureza multidimensional dos processos de governo se se espera assegurar a sustentabilidade política das iniciativas públicas. Devem ser considerados tanto os determinantes políticos quanto fiscais para se sustentar uma nova visão das relações intergovernamentais. No entanto, todos estes elementos são somente o ponto de partida no caminho para a criação de uma estratégia de desenvolvimento a médio e longo prazo.

** Gostaria de agradecer a Sebastián Saiegh, Mark Jones, Julia Pomares e Marcelo Escolar por seus comentários e opiniões.