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Página
| 1 œ O ICMS e a Integração Regional | 4 |
| 1.1 œ A Caracterização do Processo de Integração | 7 |
| 1.2 - Distorções possíveis de serem provocadas pelos impostos internos nummercado em integração | 10 |
| 1.3 œ Princípios adotados no fluxo de comercialização | 11 |
| 1.4 œ A harmonização fiscal sugerida para o Mercosul | 12 |
| 1.5 œ O ICMS e a harmonização fiscal | 13 |
| 1.6 œ O ICMS, o pacto federativo e as diretrizes para a reforma tributária frenteao processo de integração | 17 |
| Bibliografia | 22 |
* Luís Carlos Vitali Bordin
1 œ O ICMS e a Integração Regional
O sucesso da integração regional como, por exemplo, no Mercado Comum do Sul - Mercosul depende, entre outros fatores, do ajustamento da tributação através dos impostos internos aplicada nos países que o integram. Trata-se de um grande desafio, como o demonstra a experiência européia, caminhar para um desenho tributário nos diversos países que torne a incidência fiscal sobre a produção a mais neutra possível. Sabe-se que a tributação não pode ser obstáculo aos fluxos comerciais e deve interferir o mínimo possível nas decisões de investimentos e de organização empresarial, seja no interior dos espaços econômicos nacionais, seja no espaço ampliado do mercado comum.
Não há necessidade de uma equalização dos sistemas, mas de uma adequação às necessidades de formação de um mercado integrado. É fundamental, isto sim, a harmonização dos sistemas tributários, uma tarefa complexa que ainda está sendo analisada nos meios técnicos e acadêmicos. No caso brasileiro, a dificuldade de integração regional é ampliada pelas características de seu sistema federativo e pelo fato de o principal tributo do País œ o ICMS - estar na competência impositiva sub-nacional.
Neste sentido, já começa a ganhar força em alguns fóruns internacionais a idéia de que o sistema federativo não é o mais adequado para o processo de integração econômica entre países de uma mesma região. Entre outras inadequações, é destacado que a existência de competência tributária em nível sub-nacional afetaria a necessária harmonização fiscal entre os membros do bloco econômico.
A globalização dos mercados, a consolidação de blocos econômicos regionais e a formação de áreas de livre comércio determinariam crescentes limites à autonomia dos Estados nacionais. Para os que defendem esta posição, o conceito de autonomia federativa precisaria ser reavaliado. Advogam que as limitações à mobilização de recursos poderiam ser compensadas por uma maior liberdade no tocante à sua utilização, desde que as exigências do equilíbrio fiscal fossem respeitadas. Em suma, o federalismo se materializaria pela liberdade de —gastar“ e não de —arrecadar“.
* Economista com Mestrado pela FGV/RJ, Membro da Comissão de Aspectos Tributários do Mercosul (1991-94) e Fiscal de Tributos Estaduais
Os críticos do federalismo afirmam que a descentralização, ao mesmo tempo em que oxigena o funcionamento dos regimes democráticos, suscita algumas preocupações importantes, como, por exemplo, as relativas à sustentação do equilíbrio macroeconômico. O federalismo, por esta ótica, aumentaria as dificuldades de coordenação da política fiscal, com riscos para o alcance das metas de estabilização econômica. Daí a necessidade de imposição crescente de limites ao exercício do poder dos estados federados, em função das exigências macroeconômicas e das necessidades de harmonização fiscal.
Na mesma linha de argumentação, alguns economistas argentinos, ao analisarem a crise econômica de seu país, atribuíram ao sistema político federativo uma séria disfunção na medida em que propicia um descompasso entre as políticas públicas praticadas pelos governos da União e das Províncias.
O tema assume importância uma vez que a descentralização fiscal amplia as possibilidades de utilização mais eficiente dos recursos públicos, mas requer a existência de instituições e mecanismos capazes de assegurar a cooperação intergovernamental.
Sabe-se que os sistemas tributários aplicados nos diversos países estão sujeitos, entre outros fatores, à realidade sócio-econômica nacional, condicionada, por sua vez, à dinâmica sócio-econômica mundial.
Nos países da vanguarda industrial, a abertura e integração de mercados, que estava se processando em meados do século XIX, cedeu lugar ao fechamento de mercados e ao protecionismo das atividades econômicas nacionais a partir da depressão de 1873. Segundo Lagemann (2002), esse processo avançou até a busca da auto-suficiência - na versão alemã, na busca do —espaço vital“ - e culminou nas duas guerras mundiais. Partindo do diagnóstico de que o protecionismo causou as guerras e que ele representa uma solução economicamente ineficiente, persegue-se, desde o fim da II Guerra, a integração regional, da qual o exemplo maior é a União Européia, e a liberalização dos mercados, iniciada com o GATT, em 1947, e solidificada com a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1995.
Em alguns países do Terceiro Mundo observou-se um processo de industrialização tardio com base em duas diferentes estratégias: a) o desenvolvimento com base nas plataformas de exportações, caracteristicamente em países asiáticos; e b) o desenvolvimento com base na substituição de importações, que constitui os casos brasileiro e argentino, por exemplo.
Historia Lagemann, que na década de 1980, a estratégia da substituição de importações, com a concomitante ação estatal em defesa do parque industrial brasileiro, se esgotou. Após a tentativa frustrada de disseminar plataformas de exportação através da instalação de —zonas de processamento de exportações“ (ZPEs), ela está sendo substituída pela abertura do mercado tanto em nível regional, através da integração, como em nível mundial no movimento de globalização da economia mundial, caracterizado pela liberalização dos mercados e pelo conseqüente acirramento da concorrência internacional, onde se prevê apenas a sobrevivência do mais eficiente. A essas mudanças estruturais soma-se a estratégia de estabilização realizada com base no Plano Real.
Todo esse contexto estabelece novas condicionantes ao sistema tributário brasileiro. Os processos de integração e de liberalização dos mercados se contrapõem ao intervencionismo estatal, mais especificamente ao protecionismo das atividades econômicas nacionais através da instalação de barreiras, entre as quais a barreira erguida com o arsenal tributário. Assim, conclui Lagemann, a projetada participação do Brasil na ‰rea de Livre Comércio das Américas (ALCA), proposta desde 1995 pelos EUA, e pela constituição, desde 1991, do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) está demandando dos entes tributantes brasileiros, não só do governo federal, mas também dos estados e municípios, uma adequação da estrutura e política tributárias.
Quais seriam as adequações necessárias na estrutura fiscal brasileira? Que conseqüências trariam para o federalismo fiscal brasileiro? A questão central a responder é até que ponto existe ou não um —trade-off“, isto é, uma incompatibilidade intrínseca, entre a descentralização por um lado, especialmente no que tange à receita, e a estabilização e a integração regional por outro? No caso dos impostos internos, sabe-se que é o ICMS o tributo que poderá afetar mais o fluxo de bens e serviços entre os países. Como fazer para que um imposto, de competência estadual, seja corretamente coordenado de modo a evitar que atrapalhe a integração regional? O CONFAZ é suficiente como órgão de harmonização fiscal interna? Ou a legislação referente ao imposto deverá ser significativamente alterada? Até que ponto o ICMS, fonte de financiamento mais expressiva dos Estados e principal tributo do país, é um entrave para a harmonização fiscal e, por conseguinte, para integração econômica regional?
São várias, portanto, as questões a considerar. Em primeiro lugar, é preciso saber um pouco mais sobre a abrangência do processo de integração. Cabe desvendar que fases existem num processo de integração e qual o estágio em que se encontra o MERCOSUL ou a ALCA. Depois, cumpre destacar as distorções possíveis de serem provocadas pelos impostos internos numa economia de mercado e as formas de eliminá-las. Em terceiro lugar, serão informadas as exigências para a estruturação de um imposto geral sobre o consumo num processo de integração (especialmente o MERCOSUL) e avaliada a situação do ICMS frente a este desafio.
Segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (1986), a palavra processo significa —ato de proceder ou de andar; seguimento; maneira de operar, resolver ou ensinar; técnica; método; ...“ enfim é algo que implica em movimento. Já a palavra integração deriva do —ato de integrar“ que significa —completar, tornar inteiro“. Assim, podemos dizer que o processo de integração, numa forma abrangente, é o modo pelo qual as pessoas, as nações e o mundo se completam.
Segundo Machlup (1976), o uso da palavra integração para indicar a combinação de economias separadas em grandes regiões econômicas é muito recente. Iniciou entre 1939 e 1942. A sua utilização em documentos oficiais apareceu pela primeira vez em 1947 e, logo a seguir, nos dois anos seguintes, já era de uso corrente tanto na Europa como nos Estados Unidos.
O termo apresenta divergências conceituais, porém, em alguns pontos as idéias são unânimes: —(1) que integração econômica se refere basicamente à divisão do trabalho; (2) que ela envolve mobilidade de fatores e de bens, ou de ambos; e (3) que ela está relacionada à discriminação, ou à não-discriminação, no tratamento de bens e fatores (por exemplo, no que ser refere às suas origens ou destinos)“ (MACHLUP, 1976).
Os processos de integração apresentam diferenças quanto à natureza e à extensão, tanto econômica como política. No caso da União Européia, a integração é mais profunda, com dimensões econômicas, institucionais e políticas, com uma variabilidade do impulso integrador ao longo do tempo. Já na ‰sia Oriental a integração é essencialmente econômica ou —natural“ portanto, mais superficial do que a da União Européia em termos institucionais e políticos, porém, quanto à dimensão econômica, demonstra uma textura muito mais densa do que a da América do Norte.
Sabidamente, os processos de integração são lentos e requerem constantes reparos como correção de rota. Em conformidade com a experiência internacional, relatadas por Bordin (1992) e Lagemann (2002), adaptadas de Balassa (1961), as etapas desse processo ocorrem segundo a tipologia1 presente no quadro que segue (na ordem direta do grau de aprofundamento da integração).
1 Tipologia organizada a partir da primeira classificação realizada por Bela Balassa em Teoria de integração econômica. 3.ed. Lisboa: LCE, 1961.
Tipologia dos níveis de integração
| Redução de tarifas através de preferências | Ausência de barreiras (tarifárias e nãotarifárias) | Tarifa externa comum (TEC) | Liberdade de movimentação de fatores (capital e trabalho) | Certo grau de harmonização de políticas (econômica, social e/ou monetária) | Uniformização de políticas e de instituições | |
| Zonas preferenciais | X | |||||
| ‰rea de livre comércio | X | |||||
| União aduaneira | X | X | ||||
| Mercado comum | X | X | X | |||
| União econômica e monetária | X | X | X | X | ||
| Integração econômica total | X | X | X | X | X |
O nível inicial é constituído pelas —zonas preferenciais“. Trata-se, nesse caso, da criação de —áreas de preferência comercial“ tendo como instrumento a redução das tarifas do imposto de importação, através da concessão de preferência, para os fluxos de bens e serviços com origem em cada um dos países signatários do acordo. Estes acordos envolvem certas quantidades e parcelas que são liberados para o comércio recíproco. Neste estágio, cria-se um fluxo mais intenso no comércio entre os países signatários.
A —área de livre comércio“ implica na supressão das restrições tarifárias (ou quantitativas) ao comércio de produtos produzidos internamente à área dos países signatários do acordo. Porém, cada nação mantém suas próprias barreiras tarifárias em relação ao resto do mundo.
Nesses dois tipos de integração existe um estímulo a —nacionalizar“ as mercadorias importadas de terceiros países pelos agentes econômicos do país com menor tarifa para reexportá-las ao país com tarifas maiores. Para evitar isso, torna-se necessário exigir o certificado de origem, ou seja, um documento que certifique que os bens foram produzidos dentro da área de livre comércio, evitando que também os produtos provenientes de fora dela recebam tratamento privilegiado.
A —união aduaneira“ se caracteriza pela adoção de uma tarifa externa comum (TEC) dos países signatários para a entrada na área de bens e serviços provenientes de terceiros países. Em conseqüência, torna-se desnecessário o certificado de origem,considerando que uma mercadoria, ao ingressar na área da união aduaneira, será tributada com a mesma carga, independentemente do país por onde ela ingressar. Tanto as —áreas preferenciais, como a —Zona de Livre Comércio“ como a —União Aduaneira“ referem-se a questões especificamente relacionadas com o comércio internacional.
O —mercado comum“ representa mais um passo na integração ao adicionar aos instrumentos já mencionados a eliminação das restrições ao movimento dos fatores de produção, basicamente o capital e o trabalho. Nesse nível, também se busca a coordenação das políticas macroeconômicas.
Numa —união econômica e monetária“ dá-se um passo mais adiante no processo de integração. Os mercados nacionais nele integrados passam a funcionar como um único mercado nacional. Por isso, torna-se necessária a harmonização, senão a unificação das políticas macroeconômicas e setoriais, instituindo, por exemplo, um Banco Central e uma moeda única.
A —união econômica total“ implica a unificação institucional, dando origem a um Estado federado.
Esta classificação utiliza como critério o tratamento dos fluxos de bens/serviços e de fatores de produção entre as áreas dos países signatários, destacando, no campo tributário, a incidência dos impostos sobre o comércio exterior. Entretanto, os impostos aplicados internamente às economias em integração, dois quais interessa mais especificamente o ICMS, podem exercer o papel dos impostos sobre a exportação na defesa das atividades econômicas nacionais e na imposição de restrições à livre circulação de bens/serviços e fatores, que se objetiva eliminar com a integração.
O nosso enfoque neste item do trabalho são os processos de integração no qual o Brasil está associado. Desta forma, nos interessa analisar a ALCA e MERCOSUL. Como suas designações o assinalam, o objetivo, no primeiro caso, é a criação de uma área de livre comércio e, no segundo caso, um mercado comum2, evidenciando, portanto, serem concepções bastante distintas. Analisando as condicionantes para a tributação estabelecidas pelo MERCOSUL automaticamente se alcança também a ALCA, que a afeta em grau menor.
Apresentados os níveis de integração e situados os casos da ALCA e do MERCOSUL3, cabe indagar a respeito das distorções que os tributos internos, como o ICMS, podem provocar em mercados em integração.
2 O artigo 1º do Tratado de Assunção estabelece que a constituição do MERCOSUL implicará a livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos entre os países, através, entre outros, da eliminação dos direitos aduaneiros e restrições não aduaneiras à circulação de mercadorias e de qualquer outra medida equivalente. No mesmo artigo é assinalada a coordenação da política fiscal e aduaneira com o objetivo de assegurar condições adequadas de concorrência entre os Estados Parte.
3 O MERCOSUL, na realidade, está em lento processo de formação. Sua primeira fase consistiu na formação de uma área de livre comércio, caracterizada pelo programa de desgravação do imposto de importação sobre as mercadorias produzidas internamente e transacionadas entre os países do bloco. Essa fase durou de 30 de
1.2 - Distorções possíveis de serem provocadas pelos impostos internos num mercado em integração
Segundo Bordin e Lagemann (1992), as principais distorções que os impostos internos podem, teoricamente, gerar em mercados em integração são os relativos à capacidade concorrencial nos fluxos comerciais e às condições de localização de investimentos.
Na capacidade concorrencial nos fluxos comerciais, considerando que os impostos aplicados sobre o consumo, como o ICMS e o IPI, repercutem nos preços e custos das mercadorias e serviços, eles podem alterar os fluxos comerciais dentro da região em integração, por influírem nas condições vigentes de concorrência entre os produtores nela estabelecidos. O antídoto para tanto é a aplicação do princípio da não-discriminação que determina que se evite que um determinado bem vendido num país membro suporte uma carga tributária diferente pelo fato de ser originário de outro Estado Parte.
A discriminação estabelecida pela tributação pode ser contra o produto importado ou contra o produto exportado. Passaremos a identificar os detalhes de cada caso:
a) Discriminação contra o produto importado. Essa ocorre quando a taxação só incide sobre produtos importados ou quando se aplica uma alíquota maior para produtos importados. Nesse caso, os impostos internos sobre o consumo assumem, sob o ponto de vista econômico, o papel das tarifas aduaneiras que estão sendo reduzidas , como na constituição de uma área de livre comércio, ou zeradas, como na área de livre comércio completa ou uma união aduaneira em construção, podendo ser reintroduzida através deles a proteção à indústria nacional. Também deve ser considerado o produto proveniente de terceiros países, para garantir a manutenção do nível de proteção oferecido pela tarifa externa comum, definida para a união aduaneira. A eliminação da discriminação contra o produto importado revela a preocupação principal no processo de integração por parte dos produtores da área, que desejam uma tributação neutra dos fluxos comerciais.
b) Discriminação contra o produto exportado. Essa ocorre quando o país exportador tributar diretamente a exportação dos produtos ou existir a acumulação de impostos internos, não restituídos por ocasião da exportação; e quando o país importador também a tributar por ocasião das entradas. Soluções para tanto são a isenção e/ou a devolução do valor incidente internamente e a fixação de um princípio de tributação, que pode ser de origem ou de destino. A eliminação da discriminação contra o produto exportado revela a preocupação principal no processo de integração pela ótica dos consumidores, que querem o acesso a
junho de 1991 até 31 de dezembro de 1994. Para o dia 1º de janeiro de 1995, grande parte da imprensa brasileira criou uma falsa expectativa: esperava-se uma liberdade total para cruzar as fronteiras. Na verdade, o MERCOSUL constitui, hoje, uma união aduaneira imperfeita, em fase de formação.
produtos mais baratos e que não estão interessados em sustentar o aparelho de Estado de outros países.
Em relação às condições de localização dos investimentos, cumpre ressaltar que o tratamento tributário dispensado à remuneração dos fatores de produção, principalmente no caso da remuneração do capital, de maior mobilidade, mas também do trabalho, menos móvel, podem afetar as condições para a localização de novos empreendimentos (investimentos) ou até sua relocalização, propiciados pela ampliação do mercado, dentro da região em integração. Papel primordial exerce aí os incentivos4 ao investimento, para o que também se utilizam outros impostos, além do imposto de renda, e também instrumentos fora da área tributária, como os orçamentários e os de crédito.
Retomando, de forma sintética, observa-se que os principais critérios que norteiam a compatibilização dos sistemas tributários nas economias em integração são a neutralidade da tributação relativamente à origem dos fluxos comerciais e a adequada divisão da receita tributária entre os entes tributantes.
A primeira questão a ser respondida refere-se à competência tributária. Qual o princípio de tributação que deve ser adotado no fluxo de comercialização: o de origem ou destino?
A aplicação do princípio de origem para as transações entre os países membros apresenta como vantagem a eliminação das fronteiras fiscais, reduzindo os custos relativos aos controles aduaneiros. Entretanto, existem dificuldades. No caso da importação de matérias primas e insumos, para tornar possível ao país importador tributar o bem com eles produzidos com a carga imposta internamente, é necessário ter meios de descarregar o imposto cobrado na origem. Essa exigência só é plenamente satisfeita com a uniformização da modalidade técnica de estruturar a adjudicação de crédito. A uniformização também é induzida em relação à alíquota, quando se trata das vendas a consumidores finais. Numa união aduaneira, onde as importações provenientes de terceiros países estão sujeitas à tarifa externa comum e as exportações a elas destinadas são imunes, surgem problemas no descarregamento do imposto, podendo ocorrer entre os países membros a transferência de receita que ocorre nos estados brasileiros, quando um dos erários devolve como crédito recursos que ele não arrecadou. Em síntese, conforme conclusão de Cano (1994) e da Comision de Aspectos Tributarios
4 A luta pela atração de investimentos por parte dos Estados brasileiros, aguçada com a entrada maciça de recursos externos devido à instituição do Plano Real, marcou o cenário recente da discussão a respeito do federalismo brasileiro, quando a chamada —guerra fiscal“ foi guindada a problema de caráter estrutural da economia brasileira. Sem dúvida, um exagero. Não se pode esquecer, outrossim, que a —guerra fiscal“ possui também um caráter internacional, na luta dos países em atrair investimentos para garantir o crescimento de suas economias (Lagemann, 2002).
(1994), o princípio da origem induz a uma uniformização dos impostos nacionais, igualando-se a modalidade técnica de adjudicação de créditos e todos os critérios e níveis de imposição que devem considerar-se para instrumentá-los.
O princípio do destino, em que se desoneram as exportações e se tributam as importações, exige a manutenção das fronteiras fiscais e, conseqüentemente, a manutenção das aduanas5. A sua vantagem consiste em possibilitar a compatibilização da legislação através da harmonização e não necessariamente da uniformização, ao exigir, basicamente, que se aplique aos produtos e serviços estrangeiros e aos de origem local a mesma carga.
Para responder à questão de como os impostos sobre o consumo, especificamente o ICMS, por definição um imposto geral sobre o consumo, devem ser estruturados nessa nova conjuntura, pode ser utilizado o relatório oferecido pela Comissão de Aspectos Tributários, do Subgrupo de Trabalho X œ Políticas Macroeconômicas do MERCOSUL6, tendo como base o Tratado de Assunção, de 1991.
Esse Tratado, em seu artigo 7º, determina que os impostos, taxas e outros gravames internos devem dar aos produtos originários do território de um Estado Parte tratamento idêntico ao fornecido ao produto nacional. Quer dizer, a harmonização deverá eliminar todas as distorções que tais gravames podem originar no fluxo de bens e serviços entre os estados-membros, aplicando-se o princípio da não-discriminação.
No caso dos impostos gerais sobre o consumo, a Comissão sugeriu a instituição de um IVA do tipo consumo, estruturado segundo o método de subtração sobre base financeira e adotando a técnica de contrapor o imposto a imposto, cobrado segundo o princípio do destino.
Os —ajustes de fronteira“ poderiam ser realizados pela: a) isenção ou desoneração das exportações dos impostos internos; b) devolução ou desoneração dos impostos internos pagos pelo produtor ou exportador por suas compras de insumos ou matérias primas ou de bens tributados; e c) aplicação de um imposto interno sobre as mercadorias importadas no país de destino, de
5 A União Européia busca instituir esse princípio, eliminando, porém, os controles nas fronteiras físicas entre os países. A partir de 1993 está adotando uma variante, tida como provisória, em que retirou as fronteiras fiscais através de um sistema de listas. Nesse caso, houve um deslocamento do controle das fronteiras físicas para dentro das empresas dos contribuintes.
6 Saliente-se que essa Comissão analisou os impostos sobre o consumo em duas etapas œ uma, comparando os impostos gerais sobre o consumo e, outra, comparando os impostos seletivos ou específicos -, do que resultaram dois relatórios separados.
maneira tal que suportem a mesma carga que os produtos similares de produção nacional.
A opção técnica pelo IVA acima qualificado se justifica por sua capacidade em atender os requisitos para a realização destes ajustes, consagrando-se, por isso, como o —imposto da integração“.
As fronteiras fiscais, conforme a Comissão, deveriam ser mantidas. As razões para tanto foram os problemas projetados no controle administrativo - seja para operacionalizar uma câmara de compensações, seja para enfrentar os problemas decorrentes do comércio fronteiriço œ e a possibilidade de fraudes, além de considerar a condição de união aduaneira do MERCOSUL.
Entre as alternativas para desenhar as regras de harmonização a Comissão optou por sugerir o estabelecimento de normas gerais, às quais deveriam ser ajustadas as legislações dos países membros. A prática, entretanto, a partir de 1995, passou a ser o tratamento caso a caso, o que, para Lagemann (2002), sem dúvida, conduz a um processo caótico de harmonização.
Na avaliação de muitos especialistas, o ICMS7 não é um tributo adequado para o processo de harmonização fiscal. Entre outros problemas, estaria o fato de ser administrado pelos Estados e não pelo governo central, como é o caso de todos os países onde vigora o seu símile œ o IVA. Esta formatação seria um entrave para a harmonização uma vez que estimularia a —guerra fiscal“ e, por isso, demandaria a sua —federalização“, isto é, repassar a competência tributária para o governo federal.
Quanto ao aspecto de o ICMS prejudicar a harmonização tributária, é importante lembrar preliminarmente que o ICMS (e antes o ICM) é um imposto tipo —IVA“, isto é, um imposto com a técnica do valor adicionado. O IPI também é um imposto tipo IVA. Aliás, o Brasil foi um dos pioneiros no mundo em implantar tributos com esta característica. A diferença básica do ICMS com o IVA vigente na Europa e na América Latina é que nem todos os serviços estão incluídos em sua base. Apenas comunicações e transportes são tributados pelo ICMS enquanto os demais serviços são alcançados pelo ISS. Ademais, as mudanças da chamada —Lei Kandir“ (L.C. 87/96)8 eliminaram as diferenças estruturais existentes em
7 O ICMS , principal tributo brasileiro, significando em torno de um quarto da receita tributária nacional, por incidir sobre o fluxo comercial de bens e serviços, de forma semelhante ao IVA do Paraguai, da Argentina e do Uruguai, acabou sendo o escolhido para efeitos de comparação no processo de harmonização fiscal.
8 A —Lei Kandir“ (L.C. 87/96) regulamentou o imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação -ICMS que havia sido instituído pela Constituição Federal de 1988 (art. 155,I,b). O ICMS, passados quase oito anos da promulgação da Constituição Federal, continuava sendo regulado por um Convênio celebrado entre os Estados (Convênio 66/88) nos termos da Lei Complementar n. 24, de 7 de janeiro de 1975. A —nova“ lei do
relação ao IVA. A concessão do crédito integral e imediato na aquisição de bens destinados ao ativo imobilizado e a liberação integral das exportações transformou
o ICMS de um IVA —tipo produto“ com princípio misto de origem e destino em um IVA —tipo consumo“ aplicando o princípio de destino. A adoção do crédito financeiro em lugar do conceito de crédito físico eliminou também o ônus sobre
ICMS tinha na sua versão original duas características básicas: 1) desoneração das exportações dos produtos industrializados semi-elaborados e dos produtos primários; e 2) desoneração dos bens para o ativo fixo e conseqüente tendência à adoção da sistemática de concessão de —crédito financeiro“ no lugar do —crédito físico“ (concernente à mercadoria a ser revendida ou que integra o produto fabricado ou ainda que se consome no processo de produção). A Constituição de 1988 consagrou o entendimento que somente os produtos industrializados, os que produzem maior valor adicionado e geram empregos nas indústrias nacionais de processamento e transformação, é que deveriam ser beneficiados com imunidade do imposto. A —Lei Kandir“ rompeu com esta visão e ampliou o leque das desonerações para todos os bens. Esta mudança, embora positiva para a competitividade internacional dos produtos brasileiros em geral, provocou alterações significativas na forma de comercialização de alguns complexos econômicos. No caso da soja, por exemplo, foi estimulada a saída para o exterior de soja em grão em detrimento do processamento interno. As repercussões foram a geração de empregos nas indústrias de transformação no exterior e a redução da mão de obra nas indústrias locais. Em relação aos bens de capital, a forma de concessão do benefício não foi a mais indicada. Ao desonerar os bens de capital pela via do —crédito fiscal“ e não pela —isenção“, a Lei acabou privilegiando os Estados produtores desses bens como é caso de São Paulo. A análise da Lei Kandir pela ótica econômica, portanto, demonstra não ser tão positiva ou consensual como a verificada na abordagem técnica. Já numa avaliação da Lei Kandir pelo prisma financeiro, isto é, pelo mecanismo de ressarcimento pelas perdas impostas aos Estados, as críticas se avolumam. De fato, a Lei Complementar do ICMS prevê que a União compensará os Estados pelas perdas na arrecadação relativa à desoneração das exportações e a referente à concessão de crédito financeiro aos bens do ativo fixo e para os bens de uso e consumo próprio (dispositivo que não entrou em vigor) durante seis anos (até 2002), podendo chegar até a 10 anos conforme a magnitude da perda (até 2006). A compensação definida na L.C. 87/96 envolve um complexo esquema de aferição de perdas que é denominado de seguro-receita“, isto é, a manutenção do nível de receita do ICMS dos Estados verificado anteriormente à vigência da Lei. Ou seja, o —seguro-receita“ ressarcirá os Estados se e somente se ocorrer uma perda no comparativo entre o período base e o de referência, respeitado um teto de compensação. Os valores são corrigidos monetariamente para efeitos de comparação e é considerado no período base também o crescimento da economia. Em função das críticas dos Estados pelo baixo ressarcimento, o seguro receita passou a ser um fundo orçamentário a partir de 2000, repassando recursos conforme cotas definidas em função da magnitude das perdas de cada Estado. Passados mais de seis anos de vigência da Lei, do —seguro-receita“ e do Fundo orçamentário, verificamos que as perdas reais da maioria dos Estados são superiores ao valores que foram percebidos. A sistemática do seguro-receita não era a mais adequada, pois o Estado que obtinha incremento na receita através do combate à sonegação e da redução de incentivos fiscais obtinha um ressarcimento menor, enquanto que o Estado que se descuidava da sua receita obtinha uma compensação maior da União. A fórmula de ressarcimento acabava estimulando, na verdade, a prática do —caronismo tributário“, isto é, a política de negligenciar a obtenção de receitas próprias para ficar —vivendo“ de transferências federais. Por conseqüência, favorecia, também, a prática nociva da —guerra fiscal“ entre os Estados, uma vez que a redução na receita estadual proporcionada pela concessão de incentivos podia ser compensada pelo aumento do —seguro-receita“. A mudança da filosofia de compensação, abandonando a concepção de —seguro-receita“ para passar a ser um Fundo orçamentário, corrigiu as falhas do mecanismo mas não produziu receitas suficientes para compensar as perdas efetivas dos Estados. A questão mais importante, no entanto, não foi muito comentada no debate das questões tributárias nacionais. Enquanto os Estados, em 1996, deram a sua contribuição e suportaram o ônus da correção de rumo do Plano Real (sustentação do câmbio e estímulos aos investimentos e às exportações) a União, por seu turno, recriou em 1999 a CPMF e aumentou a alíquota da COFINS, tributos reconhecidos por todos como geradores de grande impacto negativo sobre os investimentos e sobre as exportações. Resumindo a abordagem aqui feita, pode-se dizer que a —Lei Kandir“ tem aspectos positivos e negativos, conforme a ótica em que seja analisada (técnica, econômica ou financeira). Mas a avaliação da Lei, dentro de um contexto tributário mais amplo, revela algumas inconsistências na condução da política tributária do País que devem ser corrigidas.
bens de uso e consumo. Estas mudanças em relação ao aproveitamento de créditos, associadas à desoneração total das exportações, tornaram, de fato, o ICMS muito próximo ao padrão internacional de um IVA —tipo-consumo“, praticamente ajustado aos padrões internacionais e harmonizado com o MERCOSUL. Esta conclusão, aliás, consta do dossiê sobre a Lei Kandir preparado pelo próprio Ministério de Planejamento. Neste documento, inclusive, o novo ICMS é definido como uma —máquina de desenvolvimento“, devido ao seu efeito dinamizador nas exportações e no reaparelhamento do parque industrial brasileiro.
As modificações impostas pela Lei 102/2000, embora não contaminassem a essência da nova estrutura do imposto, afetaram um pouco a sua formatação. A determinação contida na Lei Complementar nº 102/2000 de aproveitamento do crédito em parcelas de 1/48 avos, correspondendo, aproximadamente, à taxa de depreciação dos bens de capital, representou um recuo, ao transformar o ICMS de um IVA —tipo consumo“ num IVA —tipo renda“. Outro recuo aconteceu com a prorrogação da entrada em vigor, atualmente prevista para 1º de janeiro de 2003, da apropriação do crédito com base financeira ao propiciar o aproveitamento do imposto pago sobre bens de uso e consumo, extinguindo a atual prática baseada na integração física do produto. Estas alterações, no entanto, não tornaram o ICMS inadequado para o processo de harmonização fiscal.
Sobre a questão específica de harmonização do ICMS no âmbito do MERCOSUL, cumpre reforçar alguns aspectos já salientados neste trabalho. O mercado comum implica a adoção de políticas comuns, coordenação e harmonização das legislações fiscais, trabalhistas e de sociedades. E este é o objetivo a atingir no caso do Mercado Comum do Sul œ MERCOSUL. O artigo 1º do Tratado de Assunção estabelece que a constituição do Mercosul implicará a livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos entre os países, através, entre outros, da eliminação dos direitos aduaneiros e restrições não aduaneiras à circulação de mercadorias e de qualquer outra medida equivalente. No mesmo artigo é assinalada a coordenação da política fiscal e aduaneira com o objetivo de assegurar condições adequadas de concorrência entre os Estados Partes.
A principal determinação do Tratado de Assunção sobre as distorções possíveis de serem geradas pelos impostos internos em mercados em integração está inserida no artigo 7º, através da imposição do princípio da —não discriminação“ (orientação de que se evite que um determinado bem vendido num país-membro suporte uma carga tributária diferente pelo fato de ser originário de outro Estado-parte). Considerando que os impostos aplicados sobre o consumo repercutem nos preços e custos das mercadorias e serviços, eles podem alterar os fluxos comerciais dentro da região em integração, por influírem nas condições vigentes de concorrência entre os produtores nela estabelecidos. Daí o destaque, no artigo 7º, do princípio da não-discriminação (taxa só aplicada a importados ou aplicação de uma taxa maior para produtos importados). Assim, caso existam indícios de discriminação nas legislações estaduais do ICMS, bastaria suprimir estes dispositivos. Não é necessário —federalizar“ o imposto para alcançar este objetivo.
A —Comissão de Aspectos Tributários“ do Subgrupo de Trabalho X do MERCOSUL tratou do problema do ICMS e da harmonização tributária no âmbito do MERCOSUL. Examinando-se os informes que analisaram detalhadamente a tributação no consumo nos quatro países membros, em nenhum deles houve menção direta à inadequação do ICMS para harmonização tributária pelo fato de ser de competência estadual. A ênfase foi sempre a de identificar as possíveis distorções causadas por tratamento discriminatório às importações.
Segundo o citado relatório (elaborado em 1994, antes, portanto, da edição da Lei Kandir), considerando os efeitos perversos previsíveis de um ajustamento total no ICMS sobre as receitas de alguns Estados e, por decorrência, nos seus municípios, isso impediria, no curto prazo, uma harmonização completa nos termos do modelo europeu (em que se avançou para os diversos critérios de imposição, como o campo de incidência, a base de cálculo e suas reduções, o crédito fiscal, os tratamentos setoriais e outros tratamentos especiais para pequenos e médios contribuintes, o nível das alíquotas e o tratamento das exportações), mas permitiria uma harmonização restrita, suficiente para o nível de integração do MERCOSUL (limitado à época e ainda hoje a uma união aduaneira). Esse grau de harmonização seria definido fundamentalmente pela eliminação dos tratamentos discriminatórios contra as importações, tanto no concernente à aplicação sobre elas de alíquotas nominais superiores às aplicadas a mercadorias adquiridas no mercado interno estadual, como no concernente ao tratamento —preferencial“ dado ao fluxo interestadual, justificado no Brasil pela estrutura especial de distribuição da receita do ICMS entre os estados. Também, a critério do país exportador, deveriam ser eliminados os efeitos acumulativos que afetassem as exportações, resultante, por exemplo, da tributação dos bens de capital, sem concessão de direito a crédito por parte do adquirente.
A Lei Kandir, na sua formulação original, ultrapassou, em alguns aspectos, a harmonização restringida proposta no curto prazo pela Comissão, e abriu espaço para uma adequação mais ampla. O ICMS está sendo ajustado às novas condicionantes estabelecidas pelos processos de abertura e de integração de mercados em que o Brasil se envolveu desde o final da década de 1980. Mesmo com os recuos posteriores, o formato atual do ICMS ainda o mantém em condições de harmonização fiscal. O federalismo fiscal brasileiro pode, desta forma, ser mantido nos processos de abertura e integração de mercados.
1.6 œ O ICMS, o pacto federativo e as diretrizes para a reforma tributária frente ao processo de integração
A necessidade centralização legislativa do ICMS, sugerida na maioria das propostas de reforma tributária, especialmente para —atender aos requisitos da harmonização fiscal“, além de tecnicamente equivocada, como visto antes, suscita alguns questionamentos sobre a sua constitucionalidade por contrariar a cláusula pétrea da preservação da federação. Com base no artigo 60, § 4º, da Constituição Federal, pode-se dizer que os Estados e os Municípios têm incumbências próprias e receitas também próprias. Isto é o que confere a uma organização política o caráter de federação. Assim, um dos esteios da federação é a autonomia financeira dos entes federativos, consubstanciada a partir de atribuição de esferas de competências impositivo-tributárias diversificadas entre eles. Em outras palavras, cada um dos entes tem o poder de instituir e arrecadar seus próprios tributos destinando a receita obtida para a realização de seus gastos (capacidade de auto-administração). Neste raciocínio, a redução do poder de instituir impostos pelos Estados, especialmente quando se trata de sua maior fonte de receita œ o ICMS, pode ser perfeitamente entendida como uma afronta ao disposto na cláusula pétrea da Constituição. Concretamente, a proposta de retirada da competência legislativa do ICMS das mãos dos Estados não —acaba“ com a federação mas a faz regredir, ou seja, —é tendente a fazê-lo, nos termos da Constituição“.
Vimos antes que o ICMS, de competência tributária em nível estadual, é apontado como inadequado para o processo de harmonização tributária com os demais países, notadamente os do Mercosul, especialmente por estimular a —guerra fiscal“.
Quanto ao fato de o ICMS estadual estimular a Guerra Fiscal, cumpre esclarecer que a federalização legislativa ou até mesmo a adoção do princípio do destino não irão resolver completamente o problema. Os Estados deixariam, efetivamente, de ter um forte instrumento tributário para atrair investimentos privados, mas nada os impedirá de usar seus fundos orçamentários para esse desiderato. O que ocorrerá, na verdade, é uma mudança na forma de operacionalização dos instrumentos de atração. Deixará de ser uma Guerra —Tributária“ para ser uma Guerra —Orçamentária“.
Com efeito, a competência legislativa federal do ICMS limitará o uso da tributação como instrumento de política econômica regional (resolução de problemas conjunturais e setoriais) e de desenvolvimento (atração de investimentos) por parte dos Estados mas certamente será substituída pela via orçamentária (fundos), embora sem a mesma flexibilidade e eficácia. Nada impedirá que os Estados continuem a conceder financiamento subsidiado ou a fazer aportes de capital em empresas privadas. Ademais, mantendo-se a atual sistemática de tributação mista (origem e destino), os Estados produtores continuarão com ganhos de arrecadação no fluxo comercial interestadual, o que não ocorreria com o princípio pleno de destino. Assim, mesmo que o benefício seja financeiro (e não tributário), os Estados ainda terão interesse em atrair investimentos privados, mesmo com elevados custos, pela simples razão de obterem ganhos de ICMS nas vendas interestaduais. Ou seja, a Guerra não acaba, apenas muda o armamento.
O que verdadeiramente funcionaria para minimizar a chamada Guerra Fiscal entre os Estados é uma adequada política industrial no País, problema este que parece não ter tido muita atenção por parte dos últimos governos.
Outra questão pouco considerada é a intensidade atual do fenômeno da competição fiscal ou, como mais conhecido, da chamada —guerra fiscal“. O acirramento da competição fiscal ocorreu na primeira metade dos anos 90 quando uma onda de grandes investimentos invadiu o país. Naquele momento era necessário, no entender dos governos federal e estadual, criar condições para atraí-los. Embora alguns defendam que o —locus“ natural destes investimentos seria o Brasil, não havendo, portanto, necessidade de se apoiar estes empreendimentos com benefícios fiscais federais ou estaduais, o fato é que os Estados se armaram com arsenais de incentivos fiscais para a atração desses investimentos, especialmente as montadoras de automóveis. Já para o atual momento vivido pelo país, as medidas de combate à guerra fiscal parecem ser inócuas. A crise energética e a queda do crescimento econômico devem fazer os investimentos em novas plantas ficarem extremamente reduzidos até o final das atuais gestões governamentais.
Por outra banda, causa perplexidade a ênfase que a União dá para a questão da guerra fiscal quando ela, em alguns momentos, foi a grande incentivadora desta política. A questão da disputa pela montadora Ford entre o Rio Grande do Sul e a Bahia foi um caso típico. Com efeito, o governo federal potencializou com benefícios fiscais federais o pacote de incentivos tributários e financeiros do governo baiano.
A adoção do princípio do destino para restringir a guerra fiscal é uma das principais colocações que se fazem nas propostas de reforma tributária. É bom lembrar, no entanto, que a adoção do princípio do destino também não necessita necessariamente da interferência federal no imposto ou na sua receita. Ela pode ser feita através de uma agência que funcionaria como um —clearing house“, administrada pelos Estados e pela própria União em seu adequado papel de coordenação. Esta solução minimizaria os efeitos da chamada guerra fiscal e a perda financeira dos Estados consumidores. Cumpre lembrar que no processo constituinte de 1988 foram os próprios Estados do Norte e Nordeste (consumidores) que não aceitaram a adoção do —destino“. Preferiram manter o sistema misto negociando uma maior participação no FPE. Hoje, dispondo de uma receita significativa e certa œ o FPE, acabam utilizando o ICMS como instrumento de atração de investimentos, deflagrando guerras tributárias com os demais Estados.
No que tange ao aspecto da globalização, faz-se mister destacar, como visto antes, que o último estágio de um processo de integração econômica (após harmonização das políticas macroeconômicas e adoção de uma moeda única) seria uma integração política através da formação até de uma federação. Na Europa se vislumbra este caminho. A União Européia, no futuro, ao cabo de seu processo de integração econômica e política seria uma federação, administrando um IVA de unidades federadas, não necessariamente de competência supranacional. O Brasil, neste paralelo tributário, já contempla, em si, um processo de integração quase acabado (com um imposto tipo IVA nas unidades federadas e contando, inclusive, com um órgão de harmonização fiscal - o CONFAZ).
Em relação à propalada existência de 27 diferentes legislações estaduais do ICMS, cumpre salientar o caráter mistificador desta assertiva. O ICMS é um imposto com características nacionais. A competência legislativa estadual não abrange toda a produção normativa. O perfil jurídico do imposto é distinto e fracionado mas razoavelmente uniformizado. Existe uma espinha dorsal legislativa formada por dispositivos constitucionais, por legislação complementar (L.C. 87/96), pelas resoluções do Senado Federal (na fixação das alíquotas interestaduais e com o exterior), pelas leis estaduais e até por Convênios e outras formulações feitas no CONFAZ. A produção de normas relacionadas à definição da incidência do imposto é exercida em grau muito pequeno pelas entidades federativas. A pouca expressividade da margem de atuação do legislador estadual para a produção da norma material de incidência fez com que o tributarista Sacha Calmon Coelho (1990) definisse essa situação como —massacre da competência estadual“.
Com efeito, o ICMS é regulado por uma lei de abrangência nacional œ a chamada —Lei Kandir“ (L.C. 87/96) - que estabelece as regras gerais do tributo em todo o País. As leis estaduais apenas complementam a lei nacional. Levantamento efetuado por Bordin (2002) demonstrou que os textos estaduais seguem e reproduzem em cerca de 80% as linhas definidas no diploma nacional. O texto legal residual trata de especificidades regionais que em nada afetam a harmonização e a padronização do tributo.
É inegável que a independência tributária, essencial à caracterização de um Estado federativo, nas condições em que vem sendo praticada no Brasil, deu margem e continua possibilitando excessos no campo dos incentivos fiscais, contrários aos ideais de um federalismo cooperativo.
Essas distorções podem e devem ser inibidas. Não é necessário, porém, sacrificar um meio legítimo para os estados fortalecerem suas economias por iniciativa própria, nem dar motivo para soluções tributárias centralistas.
A centralização legislativa é uma reação desproporcional ao problema levantado, revelando que ela, na verdade, apresenta outras razões, não explicitadas. Os defeitos do sistema vigente no atual ICMS podem e devem ser corrigidos, sem sacrificar, porém, a autonomia legislativa estadual em matéria tributária. Alguns instrumentos legais, inclusive, já foram implementados para conter a guerra fiscal. São os casos da Lei de Responsabilidade Fiscal e da nova versão da Lei Kandir que possuem dispositivos de contenção de renúncia tributária.
Para o ICMS estadual poder funcionar de forma mais adequada, bastariam algumas alterações constitucionais que definissem a forma de realização da política tributária e estabelecesse as punições aos Estados infratores.9 O formato deste novo ICMS, que adotaria o princípio do destino, continuaria contendo uma legislação nacional œ lei complementar œ que definiria as normais gerais do imposto, nos moldes da atual Lei Kandir. Ela seria apenas ampliada para possibilitar uma maior padronização entre os Estados. Permaneceriam, ainda, as leis e atos normativos estaduais, garantindo aos Estados a autonomia para disciplinar aspectos, situações e institutos tributários de natureza local e que não colocassem em risco a harmonização nacional do imposto. Entre as peculiaridades locais estão, por exemplo, a concessão de diferimento a produtores rurais, a ampliação provisória de prazos de recolhimento, dentro dos limites estabelecidos pelo órgão harmonizador, a formulação de institutos simplificados na sistemática de apuração do imposto para micro e pequenas empresas.
9 O artigo 155 da CF, que disciplina o atual ICMS, poderia ganhar os seguintes dispositivos: "Art. 155,§ 2º.
XIII œ o descumprimento das deliberações ratificadas nos convênios de que trata o inciso XIV implicará:
a) na nulidade do ato e ineficácia do crédito fiscal atribuído ao estabelecimento recebedor da mercadoria ou do serviço; b) na presunção de irregularidade das contas da unidade federativa infratora correspondentes ao exercício;
c) na retenção das transferências federais a que tem direito a unidade federativa infratora; d) na sujeição da unidade federativa infratora às demais penalidades estabelecidas pela Comissão de Ética do Conselho Nacional de Política Fazendária, nos termos de lei complementar. XIV œ cabe à lei complementar: ......
a. regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, os tipos de desoneração previstos no inciso XII serão concedidos e revogados, bem assim o disposto no inciso XIII“.
Diversas são, pois, as situações de caráter regional sem influência maior na alocação de investimentos privados e sem repercussão na harmonização tributária estadual, mas muito importantes para um funcionamento mais adequado da administração tributária.
É importante esclarecer bem a diferença entre uma Lei Complementar e uma legislação federal para o tributo. Com efeito, uma coisa é se ter uma legislação nacional, através de Lei Complementar do Congresso Nacional, que estabeleça as normas gerais do ICMS no sentido de dar maior uniformidade e padronização ao tributo (uma espécie de ampliação da atual Lei Kandir). Outra coisa bem diferente é atribuir à União a competência legislativa plena e exclusiva sobre o imposto.
Esse conjunto de sugestões traduz a defesa da permanência histórica do ICMS (ou seu sucedâneo) na competência plena dos Estados, uma vez que não representa um entrave intrínseco para os processos de harmonização fiscal tanto no âmbito interno como no externo. Admite-se, porém, que as disposições das leis complementares possam conter maiores limitações em relação às atuais, objetivando a uniformização de procedimentos e um maior controle da chamada "guerra fiscal", facilitando com isto o processo de integração regional. Mantido o ICMS na competência estadual, a União poderia substituir seus tributos cumulativos (PIS, COFINS e CPMF), que constituem, na verdade, a grande distorção do sistema tributário nacional, por uma Contribuição sobre o Valor Agregado (CVA). Seria uma espécie de ICMS federal, mas administrado somente pela União, independentemente do ICMS estadual. Teríamos, na nova fórmula, também dois tributos com a técnica do valor adicionado: o novo ICMS estadual e a CVA federal. Resolvem-se, com isto, as distorções da tributação nacional e preserva-se igualmente o federalismo fiscal brasileiro.
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